RPD || Sérgio C. Buarque: Calamidade e colapso do Estado

Em crises como a da pandemia do coronavírus, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. O problema, avalia Sergio C. Buarque, é que o país está colapsando e enfrenta um déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB) este ano
Foto: Isac Nóbrega/PR
Foto: Isac Nóbrega/PR

Em crises como a da pandemia do coronavírus, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. O problema, avalia Sergio C. Buarque, é que o país está colapsando e enfrenta um déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB) este ano

Diante da calamidade econômica provocada pela pandemia do coronavírus, as reformas estruturais foram adiadas e o ajuste fiscal ficou suspenso enquanto o governo utiliza suas ferramentas fiscais e monetárias para aumentar a liquidez e elevar os gastos públicos na proteção da população vulnerável, na contenção do desemprego em massa e na defesa da sobrevivência das empresas. Quando o sistema econômico entra em colapso, o Estado deve atuar para impedir o desastre econômico e social. Mas o Estado brasileiro está também colapsando e não tem fôlego para manutenção e, menos ainda, para ampliação dos gastos públicos. De acordo com estimativas otimistas, o governo encerra este ano com déficit primário de R$ 700 bilhões (cerca de 10% do PIB), acompanhado de uma queda de 8% no Produto Interno Bruto, elevando a dívida pública para mais de 90% do PIB.

Com este cenário, é tão simplista quanto arriscado pretender que o Estado amplie os gastos públicos com o objetivo de tirar a economia da recessão, financiando com mais endividamento que leva ao encurtamento de prazo dos títulos e ao pagamento de juros acima da Selic. Qualquer referência ao New Deal é completamente equivocada e a-histórica (pelas diferenças da realidade e da natureza das crises), e ignora que, em 1933, a carga tributária norte-americana flutuava em torno de 6% do PIB[1], deixando o presidente Roosevelt com enorme folga tributária para aumento dos impostos que financiassem as obras públicas, todo o contrário dos governos brasileiros, que acumulam enormes déficits, apesar de uma carga tributária em torno de 35% do PIB.

Para tirar o Brasil do abismo é necessário, antes de tudo, recuperar o cambaleante Estado nacional na sua capacidade fiscal, que lhe permita exercer sua função básica de prestação de serviços públicos e de estímulo à reanimação econômica. Para recuperar a capacidade de investimento público e evitar o descontrole da dívida é necessário aumentar a receita ou reduzir as despesas. Os economistas se dividem na ênfase a uma ou outra alternativa. A elevação de impostos de forma seletiva, concentrados na renda mais alta de pessoa física, tem impacto pequeno na compressão da demanda agregada. Mesmo assim, alguns economistas preferem apostar na contração das despesas primárias, entendendo que a carga tributária no Brasil já é excessivamente elevada.

O tamanho da crise e, principalmente, o grande conflito distributivo que envolve as escolhas políticas exigem, na verdade, uma combinação dos dois. O aumento de impostos a partir de 2021 é tecnicamente mais fácil e politicamente palatável, mas será aceitável apenas se fizer parte de negociação política que inclua a repactuação das enormes distorções das despesas públicas. Os economistas Fábio Pereira dos Santos e Ursula Dias Peres[2] estimam que seria possível gerar receita adicional de R$ 140 bilhões com taxas adicionais e escalonadas sobre a renda de apenas 11% dos declarantes que detêm metade da renda total declarada. A criação de um imposto sobre distribuição de dividendos (atualmente isentos), enquanto se aguarda uma ampla reforma tributária, poderia adicionar algo em torno de R$ 60 bilhões. Toda essa receita nova deveria ser alocada em um fundo especial de recuperação do Estado, desvinculado das despesas primárias[3], liberando-o para investimento em áreas estratégicas e/ou numa renda social básica. Por outro lado, sem mexer na carga tributária, o economista Arminio Fraga propõe três medidas que permitiram reduzir as despesas primárias em condições de administrar o déficit primário de 8% a 9% do PIB: aprofundamento da reforma da Previdência (inclusão dos Estados e eliminação de várias folgas), implementação de uma reforma administrativa para redução dos privilégios e altos salários na administração pública, e diminuição da renúncia fiscal[4].

A combinação de mais receita e menos despesas é fundamental para permitir a ampliação dos investimentos públicos, que leve à reanimação da economia brasileira. Nada disso é alcançável sem um grande acordo político. Algo que, entretanto, parece inviável com um presidente despreparado, autoritário, anacrônico e delirante; e pouco provável com a carência dramática de lideranças políticas. O quadro é desolador. Mas talvez sejam situações-limites como esta que despertem a nação para um entendimento e uma negociação política em torno do futuro do Brasil.

Notas

[1] Carga tributária dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX (exceto durante as guerras) segundo Gonçalves de Godoi, Carlos Eduardo; e de Mello, Elizabete Rosa. Os sistemas tributários norte-americano e brasileiro sob a ótica da justiça tributária e da tributação justa. RDIET-Revista de Direito Internacional Econômico e Tributário. Brasília, V.11, nº 2, p.172-195, Jul-Dez,2016

[2] “Por uma Contribuição Social Emergencial para enfrentar a Covid-19”. Estado de São Paulo. 11 de abril de 2020

[3] Semelhante ao conceito de Keynes de criação de um “orçamento de capital” separado do “orçamento corrente”, como comentam Bittes Terra, Fábio Henrique e Ferrari Filho, Fernando. As políticas econômicas em Keynes: reflexões para a economia brasileira no período 1995-2011.JEL: B22: E12: E63

[4] Fraga, Arminio. Uma resposta à altura da crise. www1.folha.uol.com.br.31/05/2020

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