No mês de abril, o Brasil atingiu a marca de 400 mil mortos pela pandemia de Covid-19. O número de vítimas do coronavírus certamente é ainda maior, dado que desde o início da crise sanitária há relatos de subnotificação e, inclusive, pouco interesse do governo federal no acompanhamento e controle dos casos. Mas o que incomoda é o alheamento do presidente e de seus auxiliares em relação ao sofrimento dos concidadãos. É como se não tivessem responsabilidades para com o povo, o elemento pessoal do Estado. E aqui, o paradoxo de nossa situação.
Bolsonaro chegou ao governo como expressão do populismo, um fenômeno tão antigo quanto a própria democracia. Neste, confluem um líder e um povo mobilizado por um discurso que divide a sociedade política entre um nós e um eles, geralmente uma elite corrupta. A própria condição de mito, atribuída ao ex-deputado do baixíssimo clero reforça a percepção do que seria uma condição atávica de nossa evolução política. Acompanhando Ernst Cassirer, o mito, no populismo, personifica a vontade coletiva e se impõe à Constituição e às próprias instituições. “O que fica é apenas o poder e a autoridade mística do líder e a sua vontade suprema é a lei”. (2003, p. 325)
O passado, como ensinava o historiador Mac Bloch (1886-1944), não é objeto de ciência, mas ilumina o presente. E quando olhamos para trás, verificamos que a absolutização dos conflitos na história brasileira degenerou sempre em regressão na cultura democrática, em que pese o salto para a frente da aceleração econômica e a incorporação dos “de baixo” pela via dos direitos sociais. Estas, as camadas sociais inferiores, são o elemento central da lógica populista, manipuladas conforme a conjuntura, num dualismo de aceitação ou rejeição: mortadelas contra coxinhas, patriotas contra comunistas, cristãos contra destruidores da família.
Pilar do Estado moderno, a noção de povo deriva diretamente do populus romano. Ali, ao lado das famílias presentes no Senado, que representavam o núcleo originário da República, este participava das decisões sobre o destino comum, constituindo o elemento democrático e plural – a civilitas – do conjunto de cidadãos que fundava o corpo social – a civitas. A lei seria a expressão de sua responsabilidade política, traço de urbanidade e o próprio contrato que os uniria. Contraditoriamente, foi o apoio popular ao Principado e, depois, ao Dominado, que encolheu o papel político do povo romano (COLLIVA, 1991), culminando no ocaso de uma civilização e nas trevas do medievo.
Verdadeira presença ausente na democracia, o povo não é uma nulidade. Apesar de não constituir uma massa compacta, ele existe e padece as consequências do populismo. O descaso para com as leis, a corrupção da República e a demagogia como uma perversão que acomete os governos democráticos representam a catástrofe para os populares; o apocalipse medido em mortes e desesperança. E novo alimento para o irracionalismo, para as soluções que apresentam a vida como uma luta inconteste entre o Bem e o Mal. A economia contra a saúde; o mercado contra o Estado; o deus dos fundamentalistas contra o demônio.
No momento mesmo da invenção da política como esfera autônoma, na antiguidade clássica, Platão alertava para os perigos que a manipulação do demos poderia gerar pela ação de demagogos. O risco da implantação da tirania, quando da exploração dos ressentimentos populares por um perverso e o desejo irracional de castigar o levavam a descrer do governo democrático. A agonia do momento presente representa o ápice da demagogia entre nós.
É a atuação do povo como bloco que alimenta o populismo e faz da demagogia uma perversão. Tanto um como outra estiveram em germe, desde a redemocratização, na atividade de líderes e partidos, culminando no autocanibalismo do que se apresentava como o “novíssimo” na política brasileira, “diferente de tudo o que está aí”. A transformação do espaço público como espaço de luta pelo exclusivismo, no qual todo o adversário passou a ser visto como inimigo a ser derrotado trouxe uma vitória de Pirro para os adeptos do conflito, com consequências irreparáveis para uma geração de brasileiros, e a política sendo desviada para a margem dos canais institucionais pacientemente construídos.
Aos democratas, resta lutar nas trincheiras da razão e não ceder aos apelos do dualismo populista que insiste na exploração do desespero popular. A hora é de reconstrução da cultura pública essencial ao exercício da cidadania informada, ativa e plural, capaz pactuar em favor da democracia como caminho para o futuro.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Ciência Política da Unesp/FCL-CAr.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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