Governo Bolsonaro, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte, avalia Rogério Baptistini Mendes
O substantivo feminino civilidade diz respeito, entre outras coisas, às formalidades que os cidadãos adotam entre si para demonstrar respeito mútuo. Seu oposto, a incivilidade, remete à barbárie, à selvageria. Na obra O processo civilizador (1939), Norbert Elias aponta que civilização costuma designar a consciência do Ocidente em relação a seu tempo, de forma que outros tempos e outros povos, com outros costumes e práticas, seriam não civilizados. A confusão entre cultura e civilização, consolidada na modernidade, chega a seu ápice com a cultura de massas e parece emprestar sentido aos temores manifestados por Alexis Tocqueville quanto aos riscos do despotismo e do insolidarismo de uma massa de homens semelhantes em busca de pequenos prazeres, mas estrangeiros ao destino dos demais.
A polarização civilização e barbárie demarca grupos e sociedades humanas. Para além do caráter evolucionista da classificação, herdado do século XIX europeu, seu sentido está atrelado aos movimentos históricos e sociais emancipadores do homem, sendo o Iluminismo sua síntese. A construção de uma noção inclusiva e abrangente de humanidade, que daí deriva, não está dissociada das ideias dos antigos, mas as alarga. O cultivo do espírito pela filosofia encontra o método, as técnicas e a disseminação dos saberes contra a ignorância. A razão esclarecida abre seu caminho em meio às trevas e aponta para o reconhecimento mútuo dos seres humanos como portadores do mesmo destino e condição. É o que torna possível a convivência e, repugnante, o assassinato.
Do latim civis, civilização faz referência à cidade – para os gregos, lugar da vida política em oposição ao lugar da vida econômica. A distinção entre pólis (cidade) e oikos (núcleo econômico familiar) não deixa de iluminar a sensação de barbárie que acomete quem vive no Brasil. O governo federal, como nenhum outro desde a redemocratização, atua despudoramente em função de seu grupo e entrega o destino dos demais membros da sociedade política à própria sorte. Os exemplos abundam numa escala que vai do ridículo ao grotesco. E o que parece nonsense é, na verdade, visão de mundo derivada de um estado de coisas no qual negacionismo científico, violência contra adversários políticos, devastação humana e ambiental são interdependentes e complementares.
O processo que conduziu ao alargamento de perspectivas em direção ao Estado Democrático e sua dimensão civilizatória, contraditoriamente, amesquinhou as expectativas do brasileiro médio. Educado para o consumo, hoje ele confunde forma e conteúdo, substitui o longo pelo curto prazo, exagera a dimensão utilitária da vida e reduz a cultura ao entretenimento. Sua conduta é a contraparte do que lhe é cobrado em termos de repressão e desejos insatisfeitos. Numa sociedade na qual populistas de esquerda e de direita prometem e não tem como entregar, o senso de justiça termina subvertido, e a noção de público e de comum se esvanece diante das patologias do ódio e do ressentimento. Do “diferente de tudo que está aí” para o bolsonarismo, o caminho foi trilhado continuamente.
A subversão da pólis pela lógica binária que apostou na pedagogia do conflito, do “nós contra eles”, se fez acompanhar por patologias de um mercado que nunca integrou e se apresenta como lugar de resistência desregrada, incivilizada. Neste contexto, a cidade, lugar da política, é hostil, e os espaços são privatizados. Sob o manto de defesa da ordem, da propriedade e dos direitos do “cidadão de bem”, o bolsonarismo é a versão contemporânea do oikos. Na narrativa, o ambiente familiar, no qual cada um é o senhor, uma autoridade máxima, concorre com o público e o esvazia de sentido, transformando o país num verdadeiro acampamento de estranhos unificado em torno do messias com o qual se identificam.
A história não é uma marcha ascensional e unilinear, estando repleta de dificuldades e incoerências. Mas com ela se aprende. A partir dos ensinamentos do passado, da experiência e da apreciação racional, o homem civilizado e verdadeiramente livre se manifesta, constrói o presente e projeta o futuro. Na civis, no espaço público e em relação aos demais, é que a liberdade esclarecida e verdadeiramente emancipadora é exercida. Neste campo, que é o da cidadania, a democracia se fortalece e os mitos se espedaçam.
*Rogério Baptistini Mendes é sociólogo, pesquisador do LabPol -Laboratório de Política e Governo das Unesp/FCL-CAr.