Bolsonaro explora um republicanismo de aparências, dilacerando os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo, ampliando ainda mais os desafios que o século apresenta
A ideia de um Estado pervertido por políticos desonestos mobilizou a sociedade civil e iniciou o processo que, paradoxalmente, exacerbou os vícios que depravam o espaço público. A República, em sua moderna concepção, herdada dos norte-americanos, está sob ameaça antes mesmo de se consolidar. Seculares oposições distendidas em uma história de acomodações entre o velho e o novo ganham nova vida e fazem aumentar a insatisfação dos viventes. A democracia representativa, a separação de poderes como prevenção ao autoritarismo e a defesa dos direitos individuais parecem formas vazias. O governo Bolsonaro explora um republicanismo de aparências e amplia os desafios que o século apresenta, dilacerando completamente os limites entre o público e privado, o conjuntural e o estrutural, o razoável e o absurdo.
Seguindo lógica torta, os acontecimentos iniciados com as manifestações populares de 2013-14 transmutaram o que parecia ser a emergência de um protagonismo civil em despotismo fundado na moralidade e na religião, típico das sociedades hierárquicas e iliberais. O novo Brasil, egresso da onda negadora da política e dos políticos, galvanizou situação na qual o expurgo dos viciados – mas não da inclinação para o mal – é tolerado, desde que praticado contra os inimigos. E estes são muitos a povoar o universo da cultura, o sistema de partidos e a vida pública da redemocratização. Pessoas e instituições entram na mira, e os fantasmas de nossa tradição autocrática voltam a incomodar.
É possível observar que a radicalidade da concepção de autoridade que empresta sentido ao bolsonarismo está em harmonia com a visão de mundo de certas elites, organizadas politicamente e ocupadas em difundir uma versão grotesca e ultrapassada de liberalismo econômico. No universo do mercado livre, sem qualquer regulação, coordenação e planejamento, a anarquia e o caos social surgem e reclamam soluções de força. A ausência de solidarismo e o individualismo exacerbado conduzem à desordem, somente atenuada pela obediência ao soberano, homem da família, cuja moralidade é agir contra tudo e todos, para proteger os seus, os escolhidos, na jornada até a suposta terra prometida.
Uma série de equívocos nos trouxe até este momento. A pressuposição de que a justiça se confunde com a democracia, por exemplo, desgraçou o sistema político, a atividade política e, no limite, a cultura pública essencial à construção republicana. O caráter normativo do conceito de justiça dificulta verificações empíricas sobre o que seria uma situação justa, em contraste com o governo democrático que evidencia o que descreve. A primeira, conforme explica o filósofo político Félix E. Oppenheim (1913-2011), reclama o auxílio de definições morais; a segunda, não. E é este o engodo, a verdadeira cilada, que se armou no caminho da cidadania. Na luta contra a corrupção, a conexão entre Direito e Política foi subvertida a ponto de o Direito se confundir com a força coativa do Estado, e a práxis política ser amesquinhada por certa racionalidade econômica para a qual o não-Estado é o objetivo.
Voltando ao passado, a representação idealista da República como uma construção virtuosa, ordenada de cima para baixo, aproxima os que anseiam por justiça dos que exploram seus sentimentos e esvaziam a esfera pública. Num cenário atomizado, sem lugar próprio e seguro, os grupos primários, nos quais vige o contato íntimo e direto entre os membros, substituem a integração na comunidade política e levam à construção de uma identidade distorcida, apoiada no ódio contra o diferente e em contínuo transe. Tudo a ameaça, tudo a aflige. Não há destino comum; apenas inimigos a derrotar. A violência substitui o diálogo; a própria atividade parlamentar perde o sentido, transformando o que deveria ser a ágora moderna numa verdadeira arena, ocupada por tipos aberrantes e incapazes.
É por saber que os homens são o que são que os republicanos modernos criaram o sistema de pesos e contrapesos. Inumano um governo de deuses, falíveis os homens, a República moderna só é possível se operada pela Política ativa e protegida pelo Direito. Este não troca de lugar com aquela, nem pode. É de sua neutralidade e independência que os conteúdos de justiça construídos ao longo da história dependem. O que consideramos avanços civilizatórios não são objeto de negociação. Promotores, magistrados ou mitos não ocupam o proscênio. Entre nós, este pertence à cidadania.
* Sociólogo. Pesquisador do LabPol (Laboratório de Política e Governo da Unesp-FCLCAr).