Desvalorização de mão de obra dificulta sobrevivência de haitianos no Brasil; país aumenta número de refugiados e diminui autorizações para familiares
Cleomar Almeida
O corpo inclinado para frente faz o haitiano Sonel Pierre (37 anos) ter força para puxar o carrinho de mão com 800 kg de sacos de batata inglesa na Central de Abastecimento (Ceasa) em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. São 4 horas da madrugada. No mesmo local, muitos africanos usam a própria cabeça para descarregar caminhões lotados de mercadorias, ao passo que outros se revezam nas carrocerias em árduo trabalho braçal em condições degradantes. Longe da família, a situação só piora.
Em busca de melhor qualidade de vida, centenas de imigrantes encantam-se ao encontrar uma oportunidade de trabalho no Brasil, mas, com o passar dos dias, vivem o pavor de serem explorados. Na Ceasa, por exemplo, trabalham até as 21 horas. Em média, são 17 horas por dia, com intervalo apertado para engolir refeição rápida. De segunda a sábado. A equipe de reportagem da Revista Política Democrática Online viajou para Minas Gerais e verificou as dificuldades enfrentadas por pessoas oriundas de outros países para sobreviverem no Brasil.
“Não gosto de trabalhar aqui. Já pensei muito em desistir e voltar para meu país, mas, por enquanto, não tenho opção e também não consigo ter permissão para trazer minha família”, conta Sonel, perto de um dos balcões da Ceasa. Ele perdeu a mãe no terremoto que matou 300 mil no Haiti há 10 anos e ainda tenta reconstruir a vida. Todo mês, envia para a mulher e dois filhos pequenos ajuda de R$ 500, metade do que recebe sem carteira assinada. No mercado nacional, há quase 12 milhões de brasileiros desempregados.
Administradores de duas empresas instaladas na Ceasa de Contagem, onde também trabalham brasileiros que não conseguem emprego melhor, tentaram impedir a equipe da Revista de conversar com haitianos e tirar fotos. Não houve explicação. A suspeita é de exploração de mão-de-obra. Um deles ligou para a segurança terceirizada, que, em seguida, enviou quatro homens e pediu aos profissionais da reportagem para cessarem os trabalhos. Ninguém da administração da central compareceu ao local no momento.
O governo brasileiro registrou 774,2 mil migrantes em território nacional, de 2010 a 2018, conforme dados mais recentes do Relatório Anual do OBMigra (Observatório das Migrações Internacionais), vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgado no ano passado. Haitianos, venezuelanos e colombianos, segundo informações oficiais, são os que mais migram para o Brasil, o sexto país que mais recebe refugiados no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)
Assim como Sonel, Roberson (36) é outro haitiano que trabalha o dia todo na Ceasa. “É muito complicado aqui”, reclama. “Meu sonho é trazer minha família – mulher e dois filhos -, para viver aqui no país, mas é tudo muito penoso porque as autoridades dificilmente liberam. Ficar longe da família é muito ruim. Quero voltar para meu país”, afirma, com forte sotaque francês e um pouco de dificuldade de falar a língua portuguesa.
O Conselho Nacional para os Refugiados (Conare), ao qual estão vinculados cinco ministérios e a Polícia Federal, concedeu refúgio a 21.541 pessoas, em 2019, o que representa 82,6% do total de casos analisados pelo colegiado. Em relação ao total de refúgios, porém, apenas 181 (0,84%) pessoas beneficiadas tiveram autorização para estender esse direito a algum familiar. Outros 3.883 (14,9%) processos foram encerrados por desistência, e 606 (2,3%), indeferidos.
Nos últimos dois anos, o Brasil aumentou de 1.086 para 21.541 o número de refúgios concedidos no país, refletindo a onda da crise humanitária da vizinha Venezuela. No entanto, caiu o de refúgios garantidos a familiares, passando de 309, em 2018, para 181, em 2019, uma queda de 41% no período.
Boa parte dos imigrantes vive no limbo entre a falta de oportunidade de uma vida melhor no Brasil e o medo de recuo das políticas migratórias nacionais, em meio à série de ataques a direitos das pessoas, feitos pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. No último dia 17, o vídeo de um haitiano ganhou repercussão na internet. Após criticar Bolsonaro, pessoalmente, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília, um dia depois de o presidente apoiar manifestações pelo país contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), o haitiano afirmou: “Você não é presidente mais”. A reportagem não conseguiu contato com o homem.
Acre, Amazonas, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Roraima, Santa Catarina e São Paulo são os que mais registram solicitações de refúgio para imigrantes no país. Assim como na Ceasa da cidade mineira, Brasília tem grande número de haitianos trabalhando sob sol forte. Eles concentram-se, principalmente, na rodoviária do Plano Piloto e em calçadas nos arredores, a 3 quilômetros do Congresso Nacional.
Longe da família, a falta de oportunidade de trabalho adequado só piora a situação. A pesquisa “Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil: subsídios para políticas” constata a dificuldade enfrentada por pessoas oriundas de outros países. “Aqueles que conseguem obter um emprego rapidamente percebem que as expectativas feitas não corresponderão à realidade, dado que o salário é pequeno e a renda não é suficiente”, afirma um trecho. “Essa frustração materializa-se em uma narrativa bastante comum dentre os refugiados entrevistados: no Brasil, é praticamente impossível melhorar de vida sendo funcionário, empregado”, continua.
A presença de imigrantes, solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil levanta desafios para formuladores e gestores das políticas públicas migratórias e diversos atores da sociedade civil que cumprem papel histórico na acolhida desses grupos. A secretária nacional de Justiça, Maria Hilda Marsiaj, diz que “o conhecimento rigoroso da imigração é ferramenta imprescindível para a formulação de políticas públicas e para a tomada de ações específicas que permitam a inserção e contribuição para o desenvolvimento do país”. Ela reconhece, ainda, que o monitoramento estatístico, amparado por análise sociodemográfica e socioeconômica, é tarefa do Estado e recomendação da comunidade internacional.
Coordenador científico do OBMigra, o professor do Departamento de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Brasília (UnB) Leonardo Cavalcanti alerta que as autoridades públicas devem estar atentas à elaboração de políticas públicas que não permitam a discriminação dos imigrantes que chegam ao país fugindo de guerras, perseguição política e desastres ambientais. “Há pessoas que chegam ao Brasil fugindo de situações muito delicadas e que, se na maioria das vezes não têm recursos financeiros, têm um bom nível de escolaridade e experiência profissional”, ressalta, em entrevista à imprensa.