Eleições municipais mostraram que, para vencer Bolsonaro no pleito de 2022, será necessário uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador
Lemos e ouvimos sempre que eleições municipais têm lógica diferente de eleições para Executivos nacional e estaduais. Fenômenos comuns a 2016 e 2018 arranharam um pouco essa convicção. O sucesso do discurso anti-política, a força da onda lavajatista, o antipetismo como coalizão de veto e por aí vai, tudo isso se desdobrou e radicalizou entre 2016 e 2018. Agora, um ponto em discussão é em que medida 2020 reverteu 2016. Deve-se considerar o insucesso eleitoral dos discursos de polarização ideológica, da “nova política” como antipolítica, a menor relevância nas urnas do tema da segurança e a pouco peso do da corrupção. Também que o eleitorado valorizou eficácia nas gestões municipais, fator cuja importância foi potencializada pelo contexto da pandemia.
Mas não se pode excluir da análise importante elemento de continuidade entre 2016 e 2020: o fortalecimento eleitoral da chamada centro-direita, em sua diversidade. Aqui cabe distinguir uma centro-direita pragmática que recebe o apelido, muitas vezes impróprio, de centrão, e aquela que há tempos tem o DEM como sua expressão programática, postura que manteve esse partido, por mais de uma década, na oposição.
Da análise desses fatores depende a resposta à seguinte questão: a reversão que tenha havido, em 2020, do “espírito” de 2016 restabelecerá o antigo grau de autonomia de eleições municipais, deixando supor que 2022, apesar da sinalização contrária de 2020, possa reiterar o quadro inóspito de 2018 ou o padrão de desconexão que vigorou dos anos 90 até 2016-2018 seguirá sendo violado, tornando 2020 capaz de prenunciar 2022 como 2016 prenunciou 2018?
Analiticamente, é possível admitir as duas hipóteses. Politicamente, é interessante ver como reforçar a segunda. Uso aqui a chave toquevilleana que abre possibilidades a escolhas políticas, em condições gerais postas por um processo que os atores não controlam. Mas reforçar qual script de 2020? Há mais de um a delinear um realinhamento de forças. Uma bifurcação liga-se a diferenças persistentes de idioma entre a política de São Paulo e do resto do país.
Há duas versões acerca do desfecho do segundo turno das recentes eleições na capital paulista. A primeira, que a reeleição de Bruno Covas foi uma vitória do governador João Dória, o que estimularia uma aliança entre PSDB, DEM e MDB, com posição determinante do primeiro. Ela estaria em dupla polarização com o bolsonarismo e uma esquerda unida que teria encontrado em Boulos uma nova rota de navegação. A segunda versão é que Covas venceu apesar de Doria e que sua vitória pessoal aponta à possibilidade de o PSDB paulista adotar perspectiva mais ao centro e mais nacional, para superar dificuldades de trânsito de Doria, fora da centro-direita.
O peso de São Paulo nas análises encobre movimentos de fortalecimento de outro tipo de centro moderado em Fortaleza, Recife, Rio e Porto Alegre, convergentes com o ocorrido, no primeiro turno, em Salvador. Nessas cinco cidades, DEM, PSDB, MDB e Cidadania estiveram juntos com o PDT e/ou o PSB, no primeiro e/ou no segundo turno. Em todas, venceram. Em Fortaleza a aliança chegou a englobar, no segundo turno, o PT. Nessas cidades, com diversas peculiaridades óbvias, há um desenho comum, diverso daquele que São Paulo sugeriu.
Dessa bifurcação surge uma outra questão: saber se esses movimentos apontam a um tipo de centro moderado que pode atrair São Paulo, em vez de gravitar em torno do contencioso paulista e do PSDB. Sinalizam a chance de uma frente ainda no primeiro turno, situada, de fato, ao centro, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda. Isso pede uma candidatura capaz de dialogar embaixo e partidos que tenham papel aglutinador. Do nome, ainda estão longe. Quanto a partidos, é preciso conversar a sério sobre o DEM. Ele é tão central para essa rota Brasil-São Paulo como o PSDB e Boulos são para a rota São Paulo-Brasil. Para observá-lo, é preciso uma filmadora que capte seu movimento da centro direita ao centro, não flashs que o flagrem como um ator com “essência” de centro-direita.
Essas cogitações sugerem balizas para um agir baseado no que aí está: governo relativamente enfraquecido e Presidente relativamente popular. Muito pode mudar se presidente e governo desabarem juntos numa crise econômica e social ou se, por oposto, o capitão surpreender e vier a ser também presidente. É incerteza intrínseca ao processo. Convém as oposições terem pés no chão, para lidar com o que há e olhos abertos para o que pode vir.
*Doutor em Ciência Política, bacharel em Ciências Econômicas e mestre em Administração. É professor da FFFCH/UFBA, onde atua como docente no Departamento de Ciência Política e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e, como pesquisador, no Centro de Recursos Humanos (CRH). Foi Vereador em Salvador (1983-1988), deputado estadual (1989) e secretário municipal de Educação (1994).