Kassio Nunes Marques substituindo Celso de Mello no STF por indicação de Bolsonaro pode conferir a um líder que despreza as instituições a possibilidade de influenciar o Supremo a partir de dentro, avalia Murilo Gaspardo
A democracia liberal combina eleições competitivas para as funções de representação política e Estado de Direito. A garantia do Estado de Direito depende da atuação legítima e eficaz do Poder Judiciário, em especial de seu órgão de cúpula – no caso brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF). A legitimidade do STF não tem como fundamento a expressão da vontade da maioria do povo, mas sim a racionalidade substantiva de suas decisões e seus procedimentos decisórios. Isso não significa que exista apenas uma interpretação correta das normas jurídicas ou que decisões judiciais sejam politicamente neutras. Entretanto, a coerência lógico-argumentativa é imprescindível, o que inclui a valorização da colegialidade, a inadmissibilidade do casuísmo e o respeito aos precedentes (sua modificação deve apresentar fundamentos objetivos).
Nesse quadro, o processo de indicação de um Ministro do STF cumpre dois papéis: a demonstração de que é detentor de notável saber jurídico e reputação ilibada (CF, Art. 101, caput), indicação de que tem capacidade para produzir decisões coerentes e fundamentadas; e o escrutínio público da orientação política da interpretação constitucional do indicado (CF, Art. 52, III e 84). Como não existe neutralidade na interpretação constitucional, cada Ministro será mais liberal ou conservador, garantista ou punitivista etc. Há, assim, coerência na sistemática constitucional em atribuir a instância de representação política às competências de indicação (Presidente da República) e aprovação (Senado Federal), inclusive porque, após a nomeação, o Ministro adquire plena autonomia em relação a quem o indicou e aprovou.
O desenho institucional do processo de aprovação pelo Senado (Regimento Interno, Art. 383) prevê, antes da votação, o escrutínio público sobre a trajetória, a experiência e as posições do indicado sobre questões constitucionalmente sensíveis, mediante, inclusive, análise de publicações acadêmicas e decisões judiciais pretéritas (quando se trata de magistrado), com possibilidade de participação da sociedade por meio do encaminhamento de informações e sugestões de perguntas para a arguição pública (sabatina), ou até mesmo a realização de audiência pública.
Qual a razão, então, para a preocupação em relação à indicação do Desembargador Kassio Nunes Marques pelo Presidente Jair Bolsonaro para a vaga no STF, aberta com a aposentadoria do Ministro Celso de Mello?
Primeiramente, estamos tratando de um Presidente com perfil e atuação autoritários e populistas, que desrespeita e ameaça diuturnamente as instituições essenciais à democracia – inclusive o STF. Em segundo lugar, por meio de decretos e outros atos normativos, da precarização de órgãos de fiscalização e do exercício de seu poder simbólico, Bolsonaro também ataca a Constituição. E o STF tem funcionado como uma espécie de trincheira em sua defesa – por exemplo, na suspensão de decisão que revogou a proteção de manguezais e restingas. Por outro lado, o predomínio de decisões individuais sobre as colegiadas, uma jurisprudência errática e, muitas vezes, casuística e precariamente fundamentada, fragiliza a legitimidade do STF.
Nesse contexto, a indicação de um Ministro por Bolsonaro, o que conferiria a um líder que despreza as instituições a possibilidade de influenciar o STF a partir de dentro, já constitui motivo para preocupação. A escolha também é controversa. Embora Kassio Nunes preencha os requisitos constitucionais para a indicação e tenha trajetória respeitável, certamente não é um dos mais notáveis juristas brasileiros (impressão reforçada pelos títulos equivocadamente inseridos em seu currículo), nem um dos expoentes da Magistratura – o que, em verdade, não é um privilégio dele entre seus novos pares.
A posição política que orienta a interpretação constitucional do indicado (conservadora) não é um problema intrínseco – mas o caminho de sua escolha, que passa pela proximidade do novo ministro com o Centrão e as especulações de que seja parte da estratégia para blindar o Presidente e seus familiares das investigações e dos processos criminais em curso, não condizem com os princípios republicanos. Soma-se a isso o fato de o Senado não ter exercido a contento seu papel constitucional no processo de aprovação da nomeação. A questão não é a decisão favorável, mas a não realização de uma arguição pública digna desse nome, que exigisse minimamente a demonstração pelo indicado de seu notável saber jurídico e de sua orientação na interpretação constitucional.
Enfim, é necessário aguardar o início do exercício de suas funções pelo novo Ministro para saber se o fará de forma autônoma, bem como se a afirmação do Presidente, de acordo com a qual ele está “100% alinhado”, é restrita à posição conservadora ou também compreende um alinhamento pessoal, portanto, não republicano.
*Murilo Gaspardo é diretor da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP – Campus de Franca – SP. Livre-docente em Teoria do Estado pela UNESP e Doutor em Direito do Estado pela USP.