RPD || Milton Seligman: Reparação histórica com a população negra

O ponto inicial é a educação, a mais importante política pública para garantir igualdade de oportunidades futuras, aliada com a criação de oportunidades de emprego e renda de qualidade, avalia Milton Seligman em seu artigo
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Participei de um debate sobre reparação histórica com a população negra, organizado pela Fundação Astrojildo Pereira, juntamente com a professora Jane Monteiro Neves e os professores Ivanir dos Santos e Ivair Augusto.
Em meio a conhecedores profundos do tema e ativistas com larga experiência na militância democrática em defesa de direitos para a população negra, meu papel se resumiria a levantar pontos e sugerir caminhos para uma agenda de discussões com o mundo corporativo. Foi o que fiz.

O Brasil foi o último país ocidental a tornar ilegal a escravatura, isso há apenas 133 anos. Claro que isso teria reflexos profundos e negativos em nossa sociedade, e superar esse trauma não seria, como está se vendo, tarefa simples. A chaga da escravatura em nossa sociedade está no modo como naturalmente excluímos a maioria da população negra da participação em nossas instituições. Não se trata de uma simples ação de pessoas de má índole. É muito pior. Trata-se de um conjunto de práticas, com lastro na história, com raízes na cultura, que impregna relações interpessoais e causam prejuízos profundos e constantes, provocando disparidades e injustiças dentro da sociedade. Isso tem de mudar, há uma dívida a ser paga, uma reparação a ser feita.

O ponto inicial é a educação, a mais importante política pública para garantir igualdade de oportunidades futuras. Essa agenda deve começar por conhecer, reconhecer e divulgar os resultados da política de cotas raciais e lutar por sua permanente melhoria. A Lei nº 12.711/2012 completará 10 anos no próximo ano e precisa de uma avaliação independente, baseada em evidências que nos permitam celebrar os inúmeros ganhos e melhorar o que pode ser aprimorado.

A seguir, o foco deve se dirigir às oportunidades de emprego e renda de qualidade. No Brasil, a maior parte dos empregos e as maiores oportunidades de renda são geradas na iniciativa privada. Na área pública, esse tema é regulado pela legislação. E, na democracia, depende de nós, criarmos maiorias com poder para agendar e aprovar políticas de inclusão.

Na iniciativa privada e nas grandes organizações onde o Estado tem presença forte – o mundo corporativo – é que falta uma agenda para a construção da diversidade racial com justiça.

O ponto inicial é ampliar a representatividade negra nas contratações e promoções. Necessário revisar processos seletivos para reduzir o viés racista inconsciente, dando oportunidades iguais a todos os candidatos. Isso deve começar por programas de estágios e trainees dirigidos à população negra.

O segundo ponto é conscientizar as empresas sobre a pauta da diversidade, da inclusão e do viés inconsciente. Treinar as lideranças é muito importante e totalmente possível. O objetivo é trabalhar para construir empresas cada vez mais diversas, cujo ambiente de trabalho dê as condições para que todos tenham conforto psicológico para expressar suas diferenças.

Bom lembrar que no Brasil as empresas têm muitos negros entre seus empregados, número muito pequeno, entretanto, nas posições de liderança. A maioria é recrutada para ocupar cargos operacionais. Uma boa prática seria estabelecer metas para aumentar a representatividade negra em cargos de liderança, tanto na administração, como nos conselhos diretivos.

O terceiro ponto seria promover a diversidade racial no ecossistema corporativo, influenciando fornecedores, clientes e parceiros a colocar em prática iniciativas em relação ao tema. As empresas, na medida em que se conscientizem, devem ser estimuladas a ampliar a diversidade racial em seu entorno.

A implementação de uma agenda como essa tem inúmeros desafios.

Uma sugestão é estimular a criação de grupos de aconselhamento sobre diversidade racial, formado por profissionais negros referências em suas áreas. Esses profissionais não só ajudariam a desenhar as iniciativas, mas também acompanhariam sua implementação e seu desenvolvimento.

Do mesmo modo, deve ser estimulada a criação de grupos de diversidade racial dentro das empresas, com seus funcionários, para ajudar nessa jornada virtuosa. Esse grupo pode contribuir para conscientizar as pessoas dentro das empresas, promovendo discussões sobre racismo e iniciativas de diversidade. O grupo também pode servir de rede de apoio para as pessoas se sentirem acolhidas, compartilhar experiências, aumentar a segurança psicológica e o senso de pertencimento.

Na medida em que aumenta a consciência social sobre essa dívida coletiva, as empresas começam a reconhecer que para prosperar precisam criar um ambiente de negócios melhor, mais amigável, com menos conflitos e tendem a assumir uma agenda de diversidade e equidade racial.

A jornada de enfrentamento da discriminação, seja pessoal ou corporativa, não é específica, e a questão racial vem muitas vezes matizadas com outras formas igualmente estruturais de discriminação. O direito à equidade e a defesa das mulheres e da população LGBTQ+ passam a ser percebidos e tendem a fazer parte integrante dessas agendas. Convencer as pessoas a abraçar o compromisso de resgatar essa dívida social faz parte da virtuosa luta em favor da vida. O mérito dessa ação faz lembrar do Dr. Martin Luther King Jr. e de uma de suas frases mais incríveis.

“Nossa vida começa a terminar no dia em que ficamos em silêncio sobre coisas que importam.”

Milton Seligman é engenheiro eletricista , ex-Ministro da Justiça (1995-1997), ex-Presidente do Incra, ex-Secretário Executivo do Programa Comunidade Solidária e ex-Secretário Executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Desde 2015, é Consultor, Professor do Insper e pesquisador do Woodrow Wilson Center for International Scholars, em Washington, D.C., nos Estados Unidos.


** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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