Em seu artigo, Martin Cezar Feijó faz uma análise contundente do novo livro de José Paulo Netto, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra marxiana
Marx está morto. Sim. Desde 1883. Marx está vivo! O filósofo do materialismo histórico está mais vivo do que nunca. É o que demonstra um marxista “impenitente”: José Paulo Netto. E é de Marx que quero falar aqui, mais particularmente de uma biografia recém-lançada por ele escrita sobre um pensador combativo do século XIX e sua presença no quadro do século XXI: Karl Marx – uma biografia (Boitempo, 2020).
Primeiro, quero falar do autor, que conheço bem. E devo muito. Quando eu cursava minha graduação no departamento de História (FFLCH-USP) na década de 1970, reclamávamos muito que não tínhamos Marx em nossos currículos.
Puxa vida! A direita até hoje diz que a escola pública, principalmente a universidade pública, é um antro de comunistas, e nós não estudávamos o fundador do comunismo?!
Mas foi por isso que um grupo de estudantes, do qual fiz parte, resolveu criar uma célula voltada à pesquisa: Associação dos Universitários para a Pesquisa em História do Brasil (AUPHIB). E sabíamos que o estudo de Marx seria importante em nossa formação intelectual. Foi por isso que no inicio da década de 1980 soubemos da volta do exílio, com a anistia, de um estudioso em Marx, José Paulo Netto, com quem organizamos um curso de introdução à Marx. O curso era ministrado em uma sala alugada na Galeria Metrópole no centro de São Paulo. Por vários sábados na parte da manhã assistíamos aquelas aulas entusiasmadas de um pesquisador sobre o tema.
Desde então, sempre acompanhei a trajetória de “Zé Paulo” (daqui para frente, JPN) em seus estudos marxistas. Aliás, devo a ele uma das experiências profissionais mais decisivas em minha vida, a de ter sido convidado em 1985 para editar as páginas de cultura do semanário Voz da Unidade, onde fiquei até 1989.
Então, não surpreende a publicação de um livro que já nasceu também clássico, com suas 815 páginas densas da mais refinada erudição e profundidade, que resenha nenhuma dará conta. Principalmente de um resenhista que não esconde seu lado, nem sua admiração.
Em Karl Marx – Uma biografia, ficamos sabendo sobre o biografado; de sua origem, sua família, seus estudos, sua militância política, até sua vida privada. E, claro, seu amor por Jenny von Westphalen. Uma vida difícil, com momentos de total carestia, como o período em que viveram em Londres. Não fosse a ajuda do amigo Engels (de quem se fala muito no livro), a fome seria ainda pior para a família toda, em um momento em que suas pesquisas dariam origem ao Capital.
Mas os estímulos intelectuais de Marx foram os mais variados, principalmente, antes da economia política, seus interesses literários, principalmente por nomes como Homero, Shakespeare, Schiller e Goethe. Sem falar de sua atenção com o desenvolvimento da ciência, tendo lido e acompanhado as polêmicas envolvendo Darwin. O nome que marcou definitivamente sua formação foi o filósofo G.W.F. Hegel (1770-1831) e um contexto de dissolução da filosofia clássica alemã, que envolveu também Kant e Fichte.
Depois de uma experiência rica, mesmo que curta, na imprensa como jornalista da Gazeta Renana (1841-1843), Marx sentiu, com a descoberta da economia, uma “necessidade urgente de qualificar-se teoricamente e compreender a vida social” (p.65). Desse processo surgiram textos como Crítica da Filosofia do Direito em Hegel e Sobre a Questão Judaica, obras fundamentais e maduras para se entender a complexidade do pensamento de Marx.
Mas é em Paris, segundo JPN, o aprofundamento da crítica a Hegel, e a “descoberta do mundo”. Marx passa a se dedicar ao “mundo do trabalho”, mas também a uma militância política que o levou ao exílio belga, um “exílio tranquilo”, onde formula em 1845 as famosas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras, o que importa é transformá-lo”.
A vida intelectual se somou a uma intensa militância ao lado de Engels, figura decisiva, aderindo a uma prática revolucionária na Liga dos Comunistas, sobre a qual escreve com o amigo um dos textos mais influentes da história: o Manifesto do Partido Comunista. Em Londres, apesar da penúria, até miséria, entre 1849 e 1867, Marx atinge seu pleno apogeu intelectual, a plenitude de uma obra, cuja compreensão exige muito esforço e dedicação, o que faz JPN neste estudo voltado para o século XXI.
Marx morreu no dia 14 de março de 1883, mas sua obra se tornou uma realidade no século XX, no plano teórico e na prática histórica, assim como um imenso desafio para o século XXI.
E, para terminar com um spoiler, usando um termo da moda, o epílogo vira prólogo, com citações de Carlos Drummond de Andrade – A rosa do povo, “Cidade prevista” – e John Lennon – “Imagine”, assumindo um toque de poesia e um conhecimento nascido do rigor da filosofia e da ciência. Marx ainda nos faz pensar. Não só pensar, mas agir, ou como John Lennon, sonhar: “Você pode dizer que sou um sonhador, mas não sou o único”, politizando uma aspiração individual.
*Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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