“Namoradinha do Brasil”, Regina Duarte é a quarta pessoa a comandar a Secretária de Cultura em 14 meses de governo Bolsonaro e diz que vai buscar o diálogo e a pacificação com o setor cultural
Era uma vez no Planalto. A namoradinha do Brasil resolveu se casar. Pensava ser a Bela que transformaria a Fera através do Amor e da Pacificação, mas descobriu, logo depois do casamento, que havia se casado com Gastón, o bonitão que se transforma em um implacável vilão; o que havia prometido “carta branca”, mas que preferia mesmo eram “porteiras fechadas”. O Mito mostrava a face bruta da realidade e o afeto parecia se encerrar, deixando a então princesa deprimida.
Tudo parecia um conto de fadas, mas se anunciava uma história de terror de uma das mais importantes atrizes da teledramaturgia brasileira: Regina Duarte. E é da realidade que se trata aqui, dos caminhos e descaminhos da política cultural do governo eleito em 2018. Nem é para menos: um governo eleito com um discurso baseado na guerra ideológica e cultural não poderia ser diferente. E, mais ainda, se utilizando de redes sociais inundadas de fake news.
A própria demissão de um secretário da Cultura com mania de Goebbels é a demonstração da complexidade que envolve uma política cultural em um regime democrático, por mais ameaçado que esteja.
Vejamos o que disse um figurão da República: “Nenhum governo democrático impõe cultura. Só o Estado totalitário. No Brasil, durante o Estado Novo, houve tentativas nesse sentido, mas a própria força de nossa cultura repeliu esse projeto. Lembremo-nos do papel de Gilberto Freyre, nosso intelectual de maior prestígio internacional, na resistência à ditadura de Getúlio. Um governo democrático promove, não impõe cultura”. E não é qualquer funcionário não, até porque não pode ser demitido, mas sim o vice-presidente eleito, General Hamilton Mourão, em entrevista à Revista Istoé (nº 2612, 5/2/2020, p.22).
A repercussão, nacional e internacional, da demissão do obscuro funcionário da Cultura obrigou o governo de Jair Messias Bolsonaro a procurar alternativa mais palatável para ocupar a função de quem iria desempenhar a parte mais visível – e por que não dizer a mais sensível –, da política cultural de sua gestão.
Regina Duarte
O nome da atriz Regina Duarte, conhecida como a “namoradinha do Brasil” desde 1971, quando interpretou na Rede Globo de Televisão Minha Doce Namorada, com pouco mais de vinte anos. Mas a carreira da atriz começou bem antes, aos 18 anos, na TV Excelsior, em 1965, na trama escrita por Ivani Ribeiro A Deusa Vencida, como demonstra Patrícia Kogut em seu livro 101 atrações que sintonizaram o Brasil (Rio de Janeiro, Estação Brasil, 2017).
A partir daí, uma carreira de sucessos, em várias telenovelas, não só no Brasil, mas no mundo, na América Latina, sendo admirada até em Cuba, onde foi recebida com honras por Fidel Castro. Uma carreira artística de sucessos, da televisão ao teatro. E admiração do público. Teve participações políticas decisivas – e corajosas –, na campanha pelas Diretas Já. Também protagonizou, ao lado de Lima Duarte e José Wilker, a mais importante telenovela da Globo no fim da ditadura militar, Roque Santeiro, de Dias Gomes, em 1985, na qual interpretou a viúva Porcina, a que foi sem nunca ter sido. Era a história de um herói tido como morto que havia se tornado um mito na cidade.
A origem desta narrativa era uma peça de teatro proibida pela ditadura logo após o golpe de 1964: Berço de Herói, do próprio Dias Gomes. Sobre um mito construído por interesses políticos, depois, claro, desmascarado. Um texto premonitório do genial Dias Gomes, perseguido em toda sua trajetória, como demonstra Laura Mattos em seu brilhante estudo de jornalismo investigativo: Herói mutilado – Roque Santeiro e os bastidores da censura à TV na ditadura (São Paulo, Companhia das Letras, 2019).
Em seu discurso de posse, no dia 4 de março de 2020, Regina Duarte exaltou a cultura diversificada, com exemplos, talvez para agradar o chefe, até pueris em suas metáforas de “puns de palhaços”, mas com uma clara demonstração de que defende uma cultura plural e livre. Até relativista, do ponto de vista antropológico. Por isso, vem sofrendo ataques do que chamou de “facção de terrorismo digital”, associada ao guru Olavo de Carvalho, que mora nos EUA, onde também forma fiéis seguidores, mas que está sendo acusado pela própria filha, Heloísa de Carvalho, em livro recém-publicado (Meu pai, o guru do presidente. Curitiba, Kotter Editorial, 2020).
É neste quadro tenebroso, de inseguranças e temores, de promessas de censuras e vetos, que a atriz Regina Duarte, de uma carreira artística plena de sucessos, na televisão e teatro, renova seu compromisso de uma vida com a arte e a cultura, da qual ninguém pode duvidar. Apesar das opções ideológicas, que nunca escondeu, resolveu se meter em uma história de um “casamento” que só o futuro vai esclarecer, não só para si própria, mas também, principalmente, para um público que se mobiliza para ver a mocinha vencer uma realidade bem mais complexa.
“Há algo mais entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia”, como dizia o bardo inglês. Das telas ficcionais, da namoradinha do Brasil à viúva que foi sem nunca ter sido, ao enfrentamento da realidade da política em um quadro de definições rígidas; mas aparentemente disposta a enfrentar milícias digitais; apesar de tantas expectativas negativas – e preconceituosas (neste caso, não exclusivamente por parte da direita mais extrema) –, restando aos que defendem a democracia como valor universal torcer para que o final desta novela seja feliz. E a diversidade da cultura seja preservada mais uma vez, mesmo nas mais obscuras condições.