RPD || Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira: A “experiência chilena” e o tempo da política

Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo.
Foto: El Clarin
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Após cinco décadas, o desafio apontado por Alberto Aggio em sua obra “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, ainda nos pertence, marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos, avalia Marcus Vinicius Furtado em seu artigo

Livros e leitores se transformam ao longo do tempo. Longe de ser uma recepção passiva, o ato de ler é capaz de recriar o sentido dos textos a partir das experiências e expectativas vivenciadas no presente, de modo que revisitar um livro pode se tornar a descoberta de significados não acessados durante a primeira leitura. Pensando nessas várias possibilidades que a leitura pode assumir no tempo, esse artigo pretende revisitar, cinco décadas após o início da “experiência chilena”, o livro “Democracia e socialismo: a experiência chilena”, de Alberto Aggio (1993), marcando suas potencialidades para a compreensão dos dilemas políticos contemporâneos.

Em 1970, a coalizão da Unidade Popular elegeu Salvador Allende como presidente do Chile. Tal eleição representava, para não só o Chile, mas também as esquerdas, o desafio de elaborar as transformações históricas necessárias para a construção do socialismo dentro da ordem e das instituições democráticas, o que implicava a produção de uma novidade no patrimônio das culturas políticas das esquerdas socialistas e comunistas, habituadas a uma visão instrumental da democracia e aferradas aos paradigmas revolucionários. Na perspectiva de Aggio, a construção dessa novidade passava pela resolução das ambiguidades entre democracia e revolução, e pela criação de uma nova concepção de tempo político adequada à modernidade política chilena, que se construía, em um processo histórico tenso e conflituoso, ao menos desde a primeira metade do século XX, com a ativação da participação das massas na política e a construção de um consenso democrático.

Na medida em que não abandonava os posicionamentos revolucionários, as ações da Unidade Popular terminaram por pressionar a própria ordem democrática que havia permitido sua ascensão ao poder. Incapaz de compreender os rumos da revolução passiva chilena, a coalizão política vitoriosa, em determinados momentos, procurou, sem consensos políticos estáveis, acelerar e aprofundar o ritmo das transformações históricas, contribuindo para o rompimento daquele consenso democrático.

Na modernidade ocidental, como afirmou Gramsci, o fortalecimento da sociedade civil tornou frívola a perspectiva de um assalto frontal ao aparelho do Estado. Nessa nova configuração política, trata-se de, por meio das relações de força que caracterizam a política, disputar a hegemonia na sociedade. Com isso, o tempo da revolução se torna incompatível com o tempo da política. Enquanto o primeiro é marcado por urgências, o segundo se alonga indefinidamente e constrói novo significado de ruptura, marcado pela ideia de que as transformações históricas devem ocorrer a partir de consensos pactuados politicamente no interior de uma moldura democrática. Por isso, Aggio afirma que “sem conseguir traduzir o seu projeto numa grande criação em que o novo nascesse, de fato, da particularidade chilena que havia possibilitado a existência daquela experiência, e sem formular uma nova noção de tempo político na construção do socialismo, o que implicava uma nova noção de ruptura – pactuada e reformadora –, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática”.

Diante disso, precisamos refletir em torno dos significados dessa experiência para a política contemporânea. Não revisitamos a “experiência chilena” para perscrutar seus fracassos ou mesmo reconstruir a oportunidade perdida para a construção do socialismo no século XXI. Distante de qualquer perspectiva socialista, a via chilena dialoga com o nosso tempo na medida em que marca um ponto de inflexão que aponta a necessidade de abandono das expectativas revolucionárias e um redirecionamento das políticas de esquerda para o enfrentamento da democracia, enquanto perspectiva civilizacional capaz de garantir transformações históricas, sem a perda das liberdades e das individualidades.

Cinco décadas após, o desafio apontado por Aggio na via chilena, marco da história da política democrática das esquerdas de hoje, ainda nos pertence. Para o presente, marcado pela ascensão de discursos autoritários e de perspectivas antipolíticas, considerar o tempo da política significa abandonar o sentido de ruptura como um momento condensado no tempo, tanto quanto compreender que o enfrentamento desse desafio civilizacional ocorre em uma temporalidade alongada e multidirecional, na qual devemos produzir os caminhos a partir dos dilemas do presente.

*Marcus Vinicius é doutor em História e membro do Conselho Curador da Fundação Astrojildo Pereira.

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