Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece ideia desprovida do mínimo senso de realidade, avalia José Luis Oreiro em seu artigo
Recentemente, o Ministério da Economia encaminhou proposta de Reforma Administrativa na forma da PEC 32/2020. A proposta parte explicitamente do pressuposto de que existiria uma série de distorções na administração pública que aumentariam o gasto com os salários e benefícios dos servidores públicos a patamares elevados como proporção do PIB na comparação com outros países, além de tornar os serviços públicos de má qualidade. Nesse contexto, a reforma administrativa permitiria reduzir de forma significativa o gasto com o funcionalismo público, liberando espaço no orçamento fiscal para o aumento do investimento público, sem violar a Emenda Constitucional do Teto de Gastos, promulgada em 2016, que estabelece o congelamento do valor real da despesa primária da União por um prazo de 20 anos.
A realização de uma Reforma Administrativa com o objetivo de preservar o teto de gastos parece-me ideia desprovida do mínimo senso de realidade. No debate econômico brasileiro atual é crescente o consenso de que não é possível manter o Teto de Gastos (EC 95), que estabelece o congelamento dos gastos primários da União em termos reais até 2036, devido ao crescimento dos gastos com Previdência Social a um ritmo de 3% a.a, mesmo após a Reforma da Previdência, realizada em 2019. O que levará a um esmagamento progressivo das despesas discricionárias como, por exemplo, os gastos com investimento público e com o custeio de Saúde e Educação.
Além disso, o elevado nível de desemprego da força de trabalho combinado com alta ociosidade da capacidade produtiva na indústria, resultantes dos efeitos combinados da grande recessão de 2014-2016 e da pandemia do coronavírus, exige aumento expressivo da demanda agregada, o que, nas condições atuais, só pode ocorrer por intermédio do investimento público. O que esbarra nas limitações legais ao aumento de gasto público imposto pela EC 95. Para não mencionar que a experiência das reformas administrativas nos países europeus após a crise financeira internacional de 2008 mostra que os ganhos fiscais obtidos são, na melhor das hipóteses, irrisórios.
Um dos principais problemas da PEC 32 é que acaba sendo vazia, uma vez que deixa para regulamentar o essencial posteriormente – como a definição de quais serão as carreiras típicas de Estado, os critérios de avaliação de desempenho e as novas formas de acesso ao serviço público, tanto quanto a política remuneratória e de benefícios percebidos pelos servidores, as regras para a ocupação de cargos de liderança e assessoramento, e a progressão e a promoção funcionais que serão tratados por projeto de lei complementar.
Outro ponto crucial é que a reforma proposta deixa de fora as maiores fontes de distorções no serviço público – os militares, os juízes e membros do Ministério Público, e os parlamentares. No caso dos militares, parece que até obterão ganhos com essa reforma, ao poderem acumular determinados cargos (docência e empregos na saúde, sob certas condições), o que é explicitamente facultado no novo texto.
Presumiu-se que seria inconstitucional o Poder Executivo arbitrar regras para membros de outros poderes. Mas a Reforma do Judiciário promulgada em 2004 foi feita a partir de uma PEC apresentada pelo então deputado Hélio Bicudo, com adendos inclusive do Executivo, com vistas a ampliar as funções da Justiça Federal. Em 2005, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) e declarou a inexistência de qualquer “vício formal” na proposta apresentada por outros Poderes que não o Judiciário.
A reforma cria também novos meios de acesso ao serviço público e tende a reduzir fortemente os cargos com estabilidade. Os concursos públicos e a estabilidade são avanços da Constituição Federal de 1988. Os concursos são processos seletivos democráticos, transparentes, comprovam a qualificação e o conhecimento de maneira impessoal (rompendo a prática de indicações, nepotismo, trocas eleitorais, ou seja, com o velho Estado Patrimonialista). A estabilidade busca dar mais liberdade aos concursados para atuarem tecnicamente, sem a necessidade de consentir com todas as práticas de seus superiores.
E já existe a possibilidade de demissão dos servidores, sendo que desde 2003 foram demitidos 7.766 servidores federais, 566 os quais em 2018, por exemplo. Esse número não está distante de outros países (levando em conta a quantidade de servidores), como é o caso do Canadá, em que houve uma média de 130 demissões ao ano entre 2005 e 2015.
Em suma, a PEC 32, ao fragilizar a estabilidade dos servidores públicos, pode transformar os servidores em funcionários do governo de plantão, ao invés de funcionários do Estado Brasileiro, constituindo-se assim num retrocesso em direção ao velho Estado Patrimonialista.
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB.