Maior personalidade da cultura luso-brasileira de seu tempo, Padre Antônio Vieira também era surpreendente e atualíssimo, avalia Ivan Alves Filho, em seu artigo
Durante as minhas andanças por Lisboa, Algés e Coimbra, quando recolhia material para escrever o livro Memorial dos Palmares, relativo à saga dos quilombolas refugiados na Serra da Barriga, ao longo do século XVII e primeiras décadas do século seguinte, não tive dificuldades em constatar ser quase uma obrigação pesquisar os escritos do Padre Antônio Vieira. Um dever de ofício. E por uma razão simples: o autor dos célebres Sermões era o ideólogo por excelência do colonialismo português, conforme definiu, certa feita, José Honório Rodrigues. Ou seja, Vieira era o principal Conselheiro do Rei, aquele que enxergava melhor os problemas – e detinha, por vezes, a fórmula de resolvê-los. Estrategista político de primeira linha, Antonio Vieira era ainda um catequista e um educador extraordinário. E, de quebra, escrevia admiravelmente bem. Foi, provavelmente, a maior personalidade da cultura luso-brasileira de seu tempo.
Tive a felicidade, inclusive, de poder identificar um texto de Vieira, que dormitava como documento anônimo na Biblioteca da Ajuda (apesar do nome, um rico arquivo de manuscritos alojado no suntuoso Palácio da Ajuda, nas cercanias de Lisboa). Versando sobre o Quilombo dos Palmares e a chamada Guerra dos Bárbaros, no sertão nordestino, o documento fora visivelmente redigido por um eclesiástico. Tendo feito uma cópia, levei o texto para um especialista do Arquivo Histórico Ultramarino e, juntos, nós o comparamos a um outro documento original de Vieira existente na instituição. Uma comparação letra a letra, quase. Resultado: estávamos, mesmo, frente a um inédito do Padre Antônio Vieira. Sorte minha.
Por que tudo isso me vem à memória? Pelo seguinte motivo: há poucos dias, ao ler algumas passagens de Vieira, fiz a descoberta de um autor inteiramente novo. Um Vieira surpreendente; atualíssimo também. Eis aqui um trecho, escrito há mais de três séculos: “Os sonhos são imagens da vida. Cada um sonha com o que vive. Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas fechadas e às escuras retrata a vida e a alma de cada um, com as cores das suas ações, dos seus propósitos e dos seus desejos”.
Vieira, precursor de Freud? Quem sabe? É sempre bom lembrar que antes, muito antes da psicanálise, a religião já escarafunchava a alma humana e que o divã pode perfeitamente ser uma forma de confessionário na sociedade moderna.
Resta saber o que o próprio Padre Vieira pensaria de tudo isso. E Freud também, naturalmente.
Saiba mais sobre o autor
*Ivan Alves Filho é historiador, licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris em História; jornalista e documentarista brasileiro. É autor de mais de uma dezena de livros.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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