Zé Kéti encantou o país com obras que se destacaram pelo combate ao preconceito e a desigualdade
Há 100 anos, em 16 de setembro de 1921, nascia em Inhaúma, bairro da cidade do Rio de Janeiro, José Flores de Jesus, um dos maiores sambistas que o Brasil já teve. Seu nome artístico? Zé Kéti. Lamentavelmente, foram escassas as alusões a seu centenário: a grande imprensa deu pouca repercussão à data, e, nas redes sociais, o tema teve baixo “engajamento”.
Zé Kéti foi um artista excepcional. Sua obra é conhecida e reverenciada por todos os grandes sambistas do país. Melodista de mão cheia, autor de belíssimos sambas – alguns de lavra própria, outros em parceira –, suas obras são regravadas periodicamente e, o que é mais importante, permanecem sendo cantadas, geração após geração, nas rodas de samba que renovam e mantêm vivas, na ponta da língua, os clássicos que são referências do que há de melhor neste gênero musical.
Seu nome artístico é uma corruptela de um apelido de infância, “Zé Quieto”. Mas se era quieto no comportamento quando criança, Zé Kéti soube aproveitar com desenvoltura as chances que, graças a seu talento, a vida artística lhe proporcionou ao longo da vida. Além de sambista inspirado, Zé Kéti participou de momentos decisivos da cultura brasileira.
Foi, por assim dizer, artista multimídia, num tempo em que o uso da palavra não era tão corriqueiro como hoje.
No cinema, por exemplo, teve papel importante nos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos. “Eu sou o Samba”, seu primeiro sucesso, é o tema de abertura de “Rio 40 graus” (1956), onde atuou também como assistente de câmera. No filme seguinte de Nelson Pereira, “Rio Zona Norte” (1957), Grande Otelo vive um personagem inspirado nas histórias que o compositor contou ao cineasta, sobre um atravessador que tira proveito de sambistas. O samba em questão é “Malvadeza Durão”. Em 1962, participou de outro filme de Nelson Pereira, “Boca de Ouro”. Zé Kéti ainda atuou em “A Falecida” (1965), de Leon Hirszman e em “A Grande Cidade” (1966), de Cacá Diegues.
No teatro musical, em 1964, Zé Kéti foi personagem de um espetáculo que marcou época, tanto pela contundência crítica ao regime militar, como pela inovação da encenação, e que reuniu na ribalta de um palco de Copacabana três vertentes da música brasileira: a Bossa Nova, representada por Nara Leão (depois substituída por uma jovem recém-chegada da Bahia, Maria Bethânia); um artista oriundo do Nordeste, João do Vale; e um sambista de origem popular, o próprio Zé Kéti.
O nome do show, “Opinião” – escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar e Armando Costa, com direção de Augusto Boal – foi inspirado na música homônima de Zé Kéti (“Podem me prender/podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/que eu não mudo de opinião/Daqui do morro eu não saio, não”). O sucesso foi tanto, que o nome da música acabou batizando o nome de um jornal de oposição, o teatro onde o espetáculo foi encenado e, também, o grupo teatral responsável pela encenação.
Essa habilidade em construir pontes entre públicos diferentes ficou clara ainda em 1963, na época do restaurante Zicartola, acrônimo do casal Cartola e Dona Zica. Localizado em um sobrado da Rua da Carioca, no Centro do Rio, era ponto de encontro de sambista dos subúrbios e dos estudantes e intelectuais da Zona Sul. Zé Kéti teve grande participação no empreendimento. Atuou como diretor artístico da casa, que tinha shows às quartas e sextas, após o expediente comercial. Foi ali, apadrinhado por ele e pelo jornalista Sérgio Cabral, que o jovem compositor Paulo Cesar Batista de Faria virou Paulinho da Viola.
Morto em 1999, aos 78 anos, Zé Kéti, acima de tudo, será sempre reverenciado como compositor de sambas antológicos. Está, sem sombra de dúvida, entre os maiores de todos os tempos. “Eu sou o samba” (1955), “Opinião” (1964), “Diz que fui por aí “ (1964), “Nega Dina” (1964), “Acender as Velas” (1964), “Mascarada” (1965), “Leviana” e a marcha-rancho que virou clássico nos carnavais Brasil afora, “Máscara Negra” (1967), fazem parte de qualquer antologia.
Seu centenário devia ter sido comemorado com toda festa que um compositor do tamanho de Zé Kéti merece. Inclusive com homenagens oficiais. Mas o governo do Brasil atual é tacanho, pequeno, mesquinho. A cultura, área em que o sambista brilhou, é deliberadamente maltratada.
“Deixa andar”, diria ele, repetindo um dos versos do samba “Opinião”. Se Zé Kéti não recebeu as devidas homenagens, com certeza as rodas de samba continuarão a cantar suas obras-primas, que alegram o coração da moçada.
*Henrique Brandão é jornalista e escritor