Jornalista, contista, romancista e considerado por muitos críticos como o maior dramaturgo brasileiro do século XX, Nelson Rodrigues continua um verdadeiro gigante 40 anos após a sua morte
Há quarenta anos, em dezembro de 1980, morria Nelson Rodrigues. Os jovens talvez não se deem conta da dimensão de seu talento. Foi um gigante.
Nelson atuou em várias frentes. Sua obra teatral é monumental: deixou 17 peças, algumas delas marco do teatro brasileiro, como Vestido de Noiva, de 1943. É considerado por muitos críticos o maior dramaturgo brasileiro do século XX.
Autointitulava-se um eterno menino. A abordagem que fazia das relações humanas passava pelo filtro do garoto que observa o mundo de um lugar especial. “Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.
Antes de mais nada, Nelson Rodrigues era um jornalista. Tudo o que produziu teve no jornalismo sua gênese, até mesmo as peças teatrais. Passou a vida nas redações. O pai, Mario, foi dono de A Manhã – onde Nelson começou a carreira, aos 13 anos – e depois, de A Crítica. Daí não parou mais. Trabalhou em vários veículos da imprensa carioca. Entre os anos de 1950/60, chegou a escrever três colunas diárias em diferentes jornais.
Rui Castro, autor de biografia considerada definitiva (Anjo Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues), estima que, em 55 anos de jornalismo, “é provável que nenhum outro escritor brasileiro tenha produzido tanto”. Os números são eloquentes: além das 17 peças, reencenadas várias vezes, escreveu um romance (O Casamento) e oito folhetins, alguns assinados com pseudônimo (Suzana Flag e Myrna), bem como milhares de crônicas, reunidas em diversos livros – tudo produzido nas redações de jornais.
As adaptações cinematográficas das peças atraiu cineastas de diversos perfis: Leon Hirszman (A Falecida, 1965); Arnaldo Jabor (Toda Nudez Será Castigada, 1973 e O Casamento, 1975); Neville de Almeida (A Dama do Lotação, 1978 e Os Sete Gatinhos, 1980); Bruno Barreto (O Beijo no Asfalto, 1980), entre outros. A mais recente estreou há pouco no circuito cinematográfico, em plena pandemia: uma adaptação de Boca de Ouro, dirigida por Daniel Filho.
Até quem não gosta de futebol se delicia com suas crônicas esportivas. Antológicas, não perderam a atualidade. E por que não, passado tanto tempo? Porque Nelson Rodrigues não se referia a minúcias dos jogos. Ele captava a essência da partida em momentos mágicos, o embate futebolístico como espetáculo único, com seus personagens próprios – um acontecimento que se renovava a cada disputa, mesmo que elas se repetissem todas as tardes de domingo no Estádio Mario Filho (gostava de citar o nome do irmão, falecido antes dele e que dá nome ao Maracanã, por quem Nelson tinha adoração). Inventou, por exemplo, o Sobrenatural de Almeida, “entidade” capaz de modificar bruscamente alguma situação durante uma partida de futebol. Adorava o Fla x Flu: com suas crônicas, ajudou a criar a mística em torno deste clássico do futebol carioca.
Antes do golpe de 1964, Nelson não metia a colher na política. A partir de 1968, contudo, começou a implicar com quem fazia oposição aos militares. Revelou-se anticomunista ferrenho, apesar de ter convivido com jornalistas de credo diferente, como Antônio Callado, a quem chamava de “doce radical”. Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima, da linha progressista da Igreja Católica, foram alguns de seus alvos preferidos. Outros, os jovens religiosos católicos que, em trajes civis, participavam das passeatas em oposição à ditadura, rotulados de “padres de passeata” e “freiras de minissaia”. Chamado de reacionário, aceitou a pecha de bom grado, pois adorava uma polêmica. O Reacionário (1977), aliás, é o título de um de seus livros de crônicas. Nos últimos anos de vida, acabou revendo posições e passou a defender a anistia, após a prisão e a tortura do filho Nelsinho pelos militares.
Suas peças são um primor de denúncia da hipocrisia reinante. Imoral, sem vergonha, tarado, lascivo, pornográfico, são epítetos com os quais, a cada estreia de uma peça, Nelson Rodrigues foi brindado pelos setores defensores da “moral e dos bons costumes” da sociedade carioca – provavelmente proferidos por uma “grã-fina de narinas de cadáver”, uma das criações geniais do cronista implacável.
Além de dramaturgo, jornalista, contista, romancista e cronista, Nelson Rodrigues era um frasista de mão cheia. Talvez o maior da língua portuguesa. Suas tiradas caíram no gosto do povo. Continuam atualíssimas, sínteses do que há de melhor e pior na alma humana.
Uma breve amostra de suas frases, retiradas do livro organizado por Rui Castro: Flor de Obessão – As 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues.
“Dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro”
“Toda a unanimidade é burra”
“Invejo a burrice, porque eterna”
“No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte”
“A única nudez realmente comprometedora é a da mulher sem quadris”
“Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível”
“O marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca”
“Todo tímido é candidato a um crime sexual”
“Sem sorte não se chupa nem um chicabon”
“A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”
“O FlaxFlu começou 40 minutos antes do nada. E, então, as multidões despertaram”
“No Maracanã, vaia-se até um minuto de silêncio”
“O videoteipe é burro”
“Brasília é outro país, quase outro idioma”
“Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas”
“De pé, ó vítimas da fome. Mas aprendi que a fome não deixa ninguém de pé, nunca”
“A fome é o mais antigo dos hábitos humanos”