Henrique Brandão
A Netflix perdeu, no Brasil, a exclusividade que tinha há poucos anos como canal de streaming. Hoje, a oferta de plataformas é grande. A disputa pela atenção – e pelo intere$$e! – do possível assinante do canal pago é acirrada. Amazon Prime Vídeo, HBO GO, Starzplay, Globoplay, AppleTV+, Disney+, Paramount+, só para citar alguns, oferecem séries e filmes próprios e competem pelo crescente mercado audiovisual com a Netflix.
Com o acirramento da briga pela audiência, muitos dos filmes e das séries do catálogo da Netflix ou nem chegaram à plataforma ou saíram de cartaz, passando a ser exibidos por seus concorrentes – as produtoras originais. Isso obrigou a Netflix a investir cada vez mais em produções próprias.
No Brasil, quem é assinante da líder mundial do mercado de streaming já percebeu a mudança no perfil do seu catálogo. Nele, é cada vez maior o espaço ocupado por produções realizadas fora do eixo norte-americano. Espanha, China, Corea, México, Turquia, Noruega, Suécia, França, são alguns dos países encontrados no cardápio de atrações.
As produções se diversificaram cada vez mais, em busca da consolidação de mercados ao redor do mundo. Um exemplo é o êxito mundial da coreana “Round 6”. “Casa de Papel”, com seu sucesso estrondoso, abriu caminho para as séries em língua espanhola. Vários outros países entraram no radar. O Brasil, segundo maior consumidor de streamingdo mundo (perde apenas para a Nova Zelândia) é um deles. Há diversos projetos em andamento.
Até Portugal entrou na dança. A Netflix acabou de estrear sua primeira série portuguesa. “Glória” é um suspense histórico de espionagem, ambientado nos anos 1960, e mostra como a pequena vila portuguesa de Glória do Ribatejo entra no palco de operações da Guerra Fria. A partir da intervenção norte-americana, uma rádio, conhecida como RARET, foi instalada na pequena cidade para transmitir conteúdos proibidos nos países soviéticos e, ao mesmo tempo, espalhar propaganda anticomunista.
O principal personagem da história é um jovem que pertence a uma família que apoia o regime fascista de Salazar. Por influência do pai, vai trabalhar na rádio com a missão de servir de informante para a Pide, a polícia política salazarista. No entanto, ele já é agente da KGB, recrutado ainda jovem, quando estava servindo ao exército na guerra colonial portuguesa. Guardadas as devidas proporções, a série tem semelhanças com a premiada “The Americans”. “Glória” tem 10 capítulos e vale a pena assisti-la.
Outro país com produção de perfil político interessante disponível na Netflix é o Chile. Trata-se da série documental “Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile” (em coprodução com a Alemanha). A série acompanha a terrível história de uma comunidade alemã, instalada a 350 km ao sul de Santiago, aos pés da Cordilheira dos Andes. Comandada por Paul Schafer, ex-soldado nazista que foge para a América Latina, o local passa a abrigar uma seita cristã fechada, com práticas religiosas e educativas aliadas a uma rotina de trabalho não remunerado. A disciplina rígida imposta pelo seu criador, ocultava, entre outras coisas, violência sexual contra menores de idade. Nos anos 1970, após o golpe que instalou a ditadura de Augusto Pinochet, a Colônia serviu como entreposto para o contrabando de armas, além de centro de tortura e desova de cadáveres de opositores do regime militar.
O surpreendente é que tudo foi devidamente registrado por um cinegrafista que atuava sob as ordens do próprio Schafer. Os filmes mostram uma visão idílica do lugar e eram usados como propaganda para atrair mais adeptos (nesse caso, Schafer mostrou-se um bom aluno de Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, e da cineasta nazista Leni Riefenstahl).
O ponto em comum entre as duas séries é que ambas se passam na mesma época. Apesar de retratarem países diferentes, um europeu e o outro latino-americano, mostram, cada qual à sua maneira, os diferentes caminhos que cada um trilhou dali em diante. No Chile, após o golpe que derrubou Allende, em 1971, instalou-se a sanguinária ditadura de Pinochet, que deixou marcas indeléveis na vida chilena. Em Portugal, as lutas de independência de suas colônias e a forte estagnação econômica resultaram na Revolução dos Cravos, de 1974, que derrubou o regime salazarista e restaurou a democracia.
“Colônia Dignidade”, em especial, chama atenção pela coincidência de estrear no mesmo instante em que o Chile passa por um momento decisivo: em pleno processo eleitoral para a escolha do próximo presidente, o país corre o risco de instalar no poder um candidato de extrema direita, pinochetista declarado. A diferença é que, agora, a escolha pode se dar pelo voto. Caso ocorra, será um tremendo retrocesso.
Saiba mais sobre o autor
Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de dezembro/2021 (38ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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