Quo Vadis, Aida foi o representante da Bósnia ao Oscar de melhor filme internacional. Dirigido por Jasmila Žbanić, conta a história do massacre de Srebrenica, cidade da Bósnia, em julho de 1995, durante a Guerra da Iugoslávia. O filme encontra-se disponível nas plataformas de streaming Now, Vivo Play, Sky Play, iTunes, Apple TV, Google Play e YouTube.
A Bósnia é uma das sete repúblicas que hoje compõem o território da antiga Iugoslávia, país que se autodissolveu em 2003. Surgida em 1918, criada pelo Tratado de Versalhes logo após o fim da Primeira Grande Guerra, a Iugoslávia teve vida curta: 74 anos. Situada nos Balcãs, no sudeste da Europa, a região sempre foi um caldeirão fervente de conflitos nacionalistas, religiosos e étnicos.
O líder da resistência (partisans) na Segunda Guerra Mundial, Josef Tito, foi quem conseguiu manter a unidade por mais tempo: de 1945, quando assume o governo e institui a República Socialista Federativa da Iugoslávia, até sua morte, em 1980. Uma frase dessa época define bem a complexidade da região e a forma como Tito exerceu o poder: “seis repúblicas, cinco etnias, quatro línguas, três religiões, dois alfabetos e um partido”.
Após a morte de Tito, os nacionalismos e as rivalidades étnicas e religiosas afloraram. As repúblicas reivindicaram autonomia. O equilíbrio instável se rompeu, e o país explodiu em conflitos.
A Guerra da Bósnia (1992-1995) é um desses conflitos. Foram anos de batalhas envolvendo os três grupos étnicos e religiosos da região: os sérvios, cristãos ortodoxos; os croatas, católicos romanos; e os bósnios, muçulmanos. Os três grupos se engalfinharam em um antagonismo sangrento, o mais prolongado e violento da Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
É de um episódio desta guerra que trata o filme: o massacre de Srebrenica, quando mais de 8.000 homens e jovens bósnios mulçumanos foram assassinados pelo autoproclamado Exército Sérvio da Bósnia, em clara ação de limpeza étnica.
O cinema sempre se interessou por genocídios. Em geral, os filmes abordam as histórias pelo lado militar, com violências explicitas, tiroteios, bombas e esguichos de sangue. Não é o que predomina no caso de Quo Vadis, Aida.
O mérito do filme é mostrar o conflito a partir dos dramas humanos e não das operações militares. Os refugiados, bósnios mulçumanos, e seus algozes, integrantes das milícias sérvias, militarmente mais poderosos, eram velhos conhecidos entre si, muitas vezes ex-vizinhos, habitantes do mesmo bairro. Como poder mediador, as forças da Organizações da Nações Unidas (ONU) se instalaram na região e decretaram Srebrenica “zona segura” dentro do conflito. Contudo, em uma atuação pusilânime e vergonhosa, acabaram concordando em entregar os refugiados aos “cuidados” dos sérvios. Morte anunciada.
Aida, a personagem do título, é uma professora bósnia de Srebrenica recrutada pelas forças pacificadoras da ONU para servir de intérprete entre os oficiais estrangeiros, as lideranças locais bósnias e o exército sérvio. Em meio à tensão crescente, Aida faz de tudo para salvar a vida dos dois filhos e do marido, chegando até a usar sua prerrogativa de ter livre trânsito entre as forças da ONU para tentar livrá-los das forças sérvias.
Além de Aida (magistralmente interpretada por Jasna Duricic), outro personagem que chama atenção é o histriônico general Rato Mladic (Boris Isaovic), comandante das forças sérvias. Sua chegada à base da ONU é acompanhada por um cinegrafista que registra todos os movimentos. Segundo a diretora e autora do roteiro, Jasmila Žbanić, era assim mesmo que as coisas aconteciam: “se procurar no YouTube [verá] que praticamente transcrevi aquilo. Mladic era uma espécie de diretor-ator. Em frente às câmeras era muito gentil com o povo”, afirmou à Folha de S. Paulo, em 22 de abril.
O massacre de Srebenica acabou sendo considerado como um genocídio por um Tribunal Internacional Penal, que condenou Mladic à prisão perpétua, em 2017. No entanto, o genocídio é negado por parte da direita nacionalista, que tem o atual prefeito de Srebenica, de origem sérvia, entre seus representantes. A propaganda negacionista visa, sobretudo, aos jovens, nascidos depois do conflito.
No epílogo do filme, Aida faz um retorno doloroso à cidade, anos após o término da guerra. Sua casa foi ocupada. Os restos mortais dos homens da família são encontrados em uma vala comum. Em um evento na escola em que dava aula, senta-se em um auditório lado a lado com os milicianos que tomaram parte no genocídio. O silêncio impera. Só as crianças cantam no palco. Na plateia, principalmente no rosto de Aida, as feridas são marcas profundas na alma. O massacre ainda pulsa, latente, na vida de cada um, como um espectro que paira no ar.
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio (31ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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