Retorno violento do Talibã ao controle do país é claro sinal de que a fórmula hegemônica da democracia liberal se tornou disfuncional e contraproducente
A dramática saída norte-americana do Afeganistão marca o fim de uma era. Nos vinte anos de ocupação militar do país, o mundo testemunhou o declínio do poder dos Estados Unidos e a reorganização da ordem mundial em torno de uma superpotência em ascensão, a China. Cabul era a fronteira final de um modelo hegemônico há tempos insustentável. Sua queda para os militantes radicais do Talibã é mais uma evidência, talvez a derradeira, de um mundo diferente em formação.
E que mundo é esse? Trata-se de uma nova-velha ordem mundial, com elementos inéditos, mas diversas características conhecidas de outros tempos. Duas novidades merecem destaque: a primeira é o deslocamento do centro de poder para a Ásia, após cinco séculos de absoluto domínio cultural, militar e político do Ocidente.
A segunda novidade diz respeito às dinâmicas de poder. Vivemos a era do mercado geopolítico, em que Washington e Beijing – e, em menor grau, o eixo Berlim-Bruxelas – mobilizam modalidades variadas de recursos econômicos, políticos ou militares para criar esferas de influência globais, ao passo que países consumidores usufruem de certa liberdade para escolher a qual potência se associar, numa espécie de hegemonia à la carte.
Nesse novo arranjo, estabilidade e prosperidade valem mais que pluralismo e democracia. Se os americanos não se mostram capazes ou interessados em garantir o desenvolvimento local, com certa autonomia, os países buscarão a via chinesa, materializada no ambicioso projeto da Nova Rota da Seda. O pacto é simples: comércio e investimentos em troca de recursos naturais e lealdade política – sem julgamentos morais, receituários prontos ou imposição de valores.
O retorno da velha geopolítica trouxe consigo velhos sentimentos nacionalistas. Despida das amarras ideológicas da Guerra Fria, a disputa hegemônica sino-americana abriu espaço para emergência de movimentos soberanistas que contestam os efeitos da globalização, de fluxos migratórios à exportação de empregos, do multiculturalismo identitário à democracia liberal.
Nacionalistas contemporâneos em geral propõem uma visão de futuro olhando para o retrovisor, baseada no conceito de nacionalismo religioso. Expressam uma tendência, iniciada em regiões periféricas do globo e cada vez mais saliente nas democracias ocidentais, de condicionar o pertencimento nacional a um critério de fé, numa fusão pré-moderna entre identidades política e religiosa.
Sob a ótica do nacionalismo religioso, defendida por líderes mundiais tão distintos quanto Donald Trump, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Narendra Modi, a religião é o elemento que permite superar tanto um choque intra-civilizações quanto um choque entre civilizações, para remeter à clássica (e controversa) tese de Samuel Huntington. As crises sociais internas seriam superadas pelo cimento social religioso, capaz de fornecer uma bússola moral e assegurar a unidade nacional. Ao mesmo tempo, essas mesmas religiões informariam os novos padrões de alinhamento globais. O resultado seria um mundo fundamentalmente distinto daquele que conhecemos.
Após a retirada norte-americana, o Afeganistão rapidamente passou a incorporar todos os elementos dessa nova-velha ordem. O abrupto colapso das instituições políticas afegãs, cedendo passagem ao violento retorno do Talibã, é mais um claro sinal de que a fórmula hegemônica da democracia liberal se tornou disfuncional e contraproducente.
Na sequência, o imediato reconhecimento russo e chinês do novo governo afegão é revelador da dinâmica da geopolítica concorrencial, ou à la carte. Ao contrário de algumas previsões apressadas, os problemas que a China tem com sua própria população muçulmana não a impediram de encontrar um modus vivendi com fundamentalistas islâmicos além-fronteiras.
Por fim, a gradativa normalização do nacionalismo religioso afegão ao redor do mundo, mesmo à custa de valores democráticos, direitos humanos ou liberdades individuais, sugere que ainda veremos, ao longo desta década que se inicia, outras tentativas de solucionar crises internas pela supremacia da fé.
Bem ou mal, não se poderá contar com o ímpeto das potências ocidentais, enfraquecidas e dedicadas a resolver suas próprias divisões internas, para salvaguardar a democracia liberal em nível global. Se mais movimentos como o Talibã nos aguardam no futuro, caberá a cada sociedade garantir que essa fusão nacionalista religiosa e esse ambiente geopolítico cada vez mais perigoso não coloquem em risco as conquistas políticas das últimas décadas.
Guilherme Casarões é doutor e mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (Programa SAN Tiago Dantas). Leciona Relações Internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP)e na FGV-SP. Pela Contexto é autor do livro Novos olhares sobre a política externa brasileira.