Entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online, o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, avalia que é impensável encerrar o isolamento social neste momento no Brasil
“Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com H1N1. É como me perguntam sempre: ‘o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa? ’, eu digo: ‘essa, porque a pior é sempre a atual’. E essa tem características muito especiais”, alerta o médico infectologista do Hospital Albert Einstein (SP), Hélio Arthur Bacha, entrevistado especial desta 18ª edição da Revista Política Democrática Online.
De acordo com Bacha, “a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço, dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço”, alerta. “Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim, é muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. E é uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que lembre essa. Nenhuma”, informa o médico infectologista.
Ele próprio uma vítima da Covid-19, Bacha avalia que foi contaminado após cerca de três semanas de atendimento a pacientes com a doença. Recuperado, ele conclui que a sua experiência tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. E considera impensável a suspensão do isolamento social, como quer o presidente Jair Bolsonaro. “A única arma que temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar”, avalia.
Bacha estima que a Covid-19 é uma doença que pode ser atenuada em número de casos, mas que veio para ficar. Na entrevista que concedeu à Revista Política Democrática Online, o médico infectologista também trata do papel do Sistema Único de Saúde (SUS) e do presidente Bolsonaro, que, para ele, “aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil”. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Helio Bacha:
Revista Política Democrática Online (RPD): A Revista agradece sua gentileza de nos conceder esta entrevista por Zoom, em seu último dia no hospital, desta vez como paciente. A primeira pergunta é: como o senhor se contaminou com o Covid-19?
Helio Bacha (HB): Desde janeiro, venho trabalhando em função da epidemia. Passei o mês de janeiro na Itália, onde ouvi as primeiras notícias a respeito de Wuhan. Por coincidência, a Itália viria a ser o foco mais importante da Europa no mês seguinte. Àquela época, não se tinha ideia da dimensão, tamanho, importância e do inusitado dessa doença. Nem os próprios chineses tinham. Quando, em Wuhan, se observaram os cinco primeiros casos graves da doença, a província já estava tomada pelo vírus. Não se podia fazer muita coisa, além do bloqueio que os chineses conseguiram fazer bem.
O aprendizado de como se comportava o vírus veio fundamentalmente da Itália. Foi um aprendizado para os italianos e para o mundo. E quem pensou que pudesse ser diferente, como os Estados Unidos, está pagando um preço alto. O comportamento padrão da doença é o padrão italiano, a não ser em alguns países onde se conseguiu um controle social muito grande, diagnósticos precoces e pronto isolamento, como na Coréia do Sul. Mas o padrão para o mundo é o italiano.
Na Itália, inicialmente pensou-se em fazer um bloqueio de fronteiras, mas não funcionou. Não há barreira – nem de distância nem de eficácia – que impeça o vírus de chegar aonde quer que seja. Do Alasca à América do Sul, da Europa à Ásia, hoje é uma pandemia. O vírus logrou alcançar a todos os lugares do planeta.
RPD: O senhor, quando chegou ao Brasil, já estava contaminado? Ou a doença demorou para aparecer?
HB: Não. Cheguei ao Brasil em 23 de janeiro, antes de um primeiro caso. O casal de chineses que chegou à Itália não tinha sido identificado. Posteriormente, concluiu-se que a infecção provavelmente já se havia instalado no país, pouco antes de 15 de janeiro. Codogno, que é uma cidade pequena, não tinha mais o paciente zero. Toda a região da Lombardia já estava contaminada de maneira intensa. Só se pôde verificar a dimensão da contaminação pelo número de paciente graves.
Houve, de início, forte enfrentamento ideológico. O prefeito de Milão, Sala, que é de centro-esquerda, se apresentava com o lema “Milão não pode parar”, aconselhado por virologistas de confiança, que, com a experiência das outras infecções por corona vírus – como o Covid 2002, pelo SARS, pelo MERS, de 2009 –, acreditavam que a Covid19 teria velocidade possível de ser controlada. E o governador da Lombardia, Attilio Fontana, que é da Lega, partido de direita, defendia a política do bloqueio. Acabou prevalecendo a posição do prefeito.
Uma coisa foi a Lombardia; outra, foi o conjunto da Itália, onde o bloqueio funcionou. O bloqueio funcionou com graduação regional clara; o que não funcionou foi a estrutura de saúde, de atenção médica, de cuidados intensivos. Essa foi uma situação lamentável, porque os italianos não imaginavam a velocidade de apresentação de casos graves, descaso que se repetiu em outros lugares do mundo, como nos Estados Unidos, em particular, em Nova Iorque.
RPD: Quando o senhor percebeu que estava contaminado?
HB: Trabalho em um hospital onde os preparativos de combate à epidemia começaram em janeiro. Ao surgirem os primeiros casos, cuidei de vários, claro que com proteção pessoal. Mas o início da epidemia sempre tem um elemento de surpresa e eu devo ter-me infectado em alguma situação que não sei identificar exatamente. Só sei que, depois de duas, três semanas de atendimento a pacientes, já estava contaminado com o Covid-19.
Minha experiência pessoal tornou evidente que essa é uma doença muito diferente de qualquer outra infecção respiratória. Ela absolutamente não tem nada a ver com o H1N1. É como me perguntam sempre: “o que é pior, a epidemia do H1N1 ou essa?”, eu digo: “essa, porque a pior é sempre a atual”. E essa tem características muito especiais. Algumas vezes, a experiência com outras epidemias ajuda, em termos de previsibilidade do avanço e dos cuidados necessários. Mas muitas vezes atrapalha, porque se imagina que vai ser sempre igual àquela última, e não é. Ela não é a mesma coisa do ponto de vista epidemiológico, de comportamento, de rapidez, de avanço. Não é a mesma coisa do ponto de vista clínico. A doença se apresenta de uma forma muito diferente, a evolução da doença não é uma evolução de começo, meio e fim. É muito cheia de acidentes no evoluir da clínica. É uma doença muito especial. E, do ponto de vista dos pacientes, também. Não me lembro de ter encontrado nenhuma infecção que me lembre essa. Nenhuma.
A infecção foi um exercício, nos doze primeiros dias, de piora, piora, piora, piora. Amanhã eu vou estar melhor, me dizia, e voltava a piorar. Por sorte, mantive a serenidade, com um sentimento de resignação, uma sensação de calvário, mas não perdi a serenidade em momento algum.
RPD: Nessas últimas semanas, o presidente Bolsonaro tem insistentemente se manifestado em favor da suspensão do isolamento, ao arrepio da visão majoritária de médicos e pesquisadores. Qual seria, de seu ponto de vista, o critério técnico para que este isolamento venha a ser suspenso? Há um índice de contaminação da sociedade como um todo, da população, que possa garantir que a suspensão desse isolamento não implique o retorno da doença, em um pico mais alto?
HB: A suspensão, a meu ver, é impensável, porque a única arma que nós temos contra a doença é o isolamento. Não temos alternativas. Quando eu escuto a alternativa do isolamento vertical, vejo apenas uma vontade, muito longe de se implantar. Foi eficiente na Coréia do Sul, porque se fizeram exames individuais, desde o início. Como se faz isso? Você sai fazendo diagnóstico a partir de testes na população de sintomáticos e assintomáticos. Identificado um positivo, ele é isolado. Se tiver condições, na sua residência; se não, no hospital ou em hotel. O isolamento é imediato. Isso é feito antes do início da elevação da curva.
Essa opção, aqui no Brasil, não existe. Vejo as pessoas que colocam isso como uma desculpa para abandonar as pessoas à sua sorte. Quem for morrer morre e pronto. Isso tem um custo econômico, um custo de vidas e um custo ético que é inviável. Do ponto de vista político, inteiramente inviável. O discurso de ‘vamos suspender o isolamento’ é um discurso de pura irresponsabilidade ética, social e médica. Eu não vejo como a própria pessoa que faz esse discurso pode se levar a sério. Essa possibilidade não existe. E não existe por que nós não teríamos, em curto prazo, condições de atendimento do número de casos que há – pelo tamanho da curva – entre a população.
De início, a doença contagiou os estratos socioeconômicos mais privilegiados do país. Apareceu nos hospitais de maiores recursos, em pessoas com maior poder aquisitivo. O grande dilema será quando se massificar o atendimento, com a contaminação de pessoas menos favorecidas no plano econômico. Nossa rede hospitalar está ocupada, sempre faltando leitos de UTI. Não é com essa epidemia que aparece a notícia de falta de leitos de medicina intensiva. Temos já uma carência no cuidado dos pacientes com quadros de acidente vascular cerebral, de infarto agudo de miocárdio, de doenças pulmonares crônicas… A carência de leitos de medicina intensiva já é crônica. Para se evitar a carga de uma demanda repentina em ascensão, impõe-se um eficiente isolamento social.
RPD: O senhor acha que a Covid-19 vai determinar o fim do isolamento, e não o isolamento é que vai determinar o fim da Covid-19?
HB: Não existe nada que seja de eficácia 100%, é sempre uma questão de redução de danos. Essa redução de danos vai ser mais eficiente na medida em que nós consigamos atender à demanda de leitos de medicina intensiva. A situação de pessoas morrendo sem assistência ventilatória em um quadro de insuficiência respiratória é muito dramática. Dramático para o paciente, para o médico que assiste, para uma sociedade. Uma sociedade minimamente saudável não convive com isso em paz.
RPD: A Revista gostaria de fazer um registro, para conhecimento de nossos leitores. Trata-se de militantes de todas as lutas democráticas desses últimos trinta anos e, também, do movimento sanitário do Brasil, a quem o SUS muito deve. Menciono, em particular, Sérgio Arouca, Eleutério Rodriguez Neto e Eric Jenner Rosas. Todos eles moraram muitos anos aqui em Brasília.
O presidente Bolsonaro aparentemente está fazendo uma aposta política, pondo suas fichas na área da saúde, da crise sanitária, dessa pandemia que corre o mundo e o Brasil. Essa aposta centra-se no fim do isolamento e em um tratamento que não tem garantia científica alguma. É uma aposta de muito risco, que as pessoas com um pouco de conhecimento diriam que é uma aposta no caos. Qual é sua opinião a respeito? Qual será o ganho possível, em termos políticos, do presidente, com uma aposta no caos? E quais seriam as perspectivas do SUS após a doença?
HB: O SUS é uma obra coletiva, tanto de tanto médicos, como de profissionais de saúde, em geral, e do povo brasileiro, em particular. Três pessoas foram citadas, mas é uma obra coletiva e um orgulho, uma referência para o mundo. Acho que é o maior sistema único de saúde com atenção universal do mundo. E essa crise recoloca a importância de se ter uma estrutura estatal de atenção à saúde, permanente. A ideia de planos de saúde que pudessem dar conta dessa condição não tem desenho precedente do mundo. Isso ficou muito claro na Itália, na China e, especialmente, nos Estados Unidos, onde a medicina, a atenção médica, o modelo para o mundo são o maior desastre. Hoje, o número de mortes nos Estados Unidos, em um dia, bate o recorde do mundo. Ou seja, a capacidade da assistência médica americana, de atender os casos de insuficiência respiratória, está em colapso.
Então, qual é o cálculo político que o presidente da República faz ao assumir uma conduta com expectativas de drogas que a gente sabe o quanto não funcionam? Essa não é uma droga que não foi utilizada, ela já foi utilizada na China, ela está sendo utilizada aqui entre nós. Conhecemos as limitações da droga. Não é nenhuma maravilha, não dá conforto em termos de assistência ventilatória. Não modifica a condição de segurança do paciente. Nós sabemos o quão limitada ela é. Continuamos sem ter tratamento eficaz, medicamentoso, para o Covid-19. O cálculo político que é feito, o que eu vejo de fora – já que não sou político – me provoca muito medo, porque a impressão que me dá é de negação da doença; que não se planeja nenhuma atenção para o tamanho da catástrofe. Isso preocupa. É claro que o preço a pagar é grande, inclusive do ponto de vista de quem implementa essa política. Espero que o governo faça ainda, a tempo, um esforço de reconstrução do que nós temos de SUS, para que dê tempo, ainda, de fazer a atenção médica necessária, a atenção à saúde necessária aos cuidados desses pacientes.
RPD: Quanto à possível debelação do vírus. Estudos recentes mencionam que a ação do Covid-19 seguiria danosa até contaminar um determinado percentual da população. Os números propostos variam entre 50% e 80%. Para o senhor, haveria a possibilidade de eliminação da doença de maneira radical?
HB: Não. Ela pode ser atenuada em termos de número de casos, mas essa é uma doença que veio para ficar. Ainda vamos ter de conviver com ela por algum tempo. Desde Hipócrates, a quatro mil anos de nós, melhoramos muito o diagnóstico e melhoramos muito a terapêutica, mas não o prognóstico. O número de variáveis é tão grande…. Há cerca de um mês, tive casos graves do H1N1, que chegou ao Brasil em 2009. Boa parte dos brasileiros já está imunizada contra essa doença. Deixa, portanto, de ser uma doença endêmica entre nós. Ela é tratável, mas não dá para falar em cura. Não registra mais aquele volume de casos que poderia pôr em colapso os atendimentos, mas é uma doença que veio para ficar. É tratável, só que não dá para falar em cura. Já o Covid-19 é uma situação aguda para agora e para os próximos meses. Provavelmente, vamos viver de forma dramática com essa doença até, pelo menos, o final do ano.
RPD: Quando e se Covid-19 for contido, que mundo teremos? Mais solidário? Mais xenófobo? Mais socialmente consciente? Ou com maior enfrentamento entre ricos e pobres?
HB: Eu torço para um lado. Torço para que a humanidade ganhe em termos de solidariedade, mas a possibilidade da barbárie existe. Essa é uma preocupação nos momentos de muita escassez de recursos e em que as pessoas tentam se salvar sozinhas. Essa é uma doença diante da qual nós podemos lavar as mãos, manter o distanciamento de um metro e meio um do outro e pronto, o resto são ações coletivas. Ninguém se salva sozinho dessa epidemia. Para se salvar, vai ser necessário alta dose de solidariedade. A gente vê prevalecer, em vários estratos sociais, essa coisa de “quem morrer, morreu, quem se salvar se salvou, esse é o curso natural da vida”. Mas a experiência coletiva de falta de solidariedade pode ser um fator de agravamento das possibilidades de barbárie no futuro. E aí os ressentimentos, a falta de compromisso dentro da sociedade podem levar a uma condição de mundo em que eu não gostaria de viver.
Que a experiência trágica dessa epidemia, no mundo, nos conduza à construção de um mundo mais solidário, mais fraterno, onde o sofrimento das pessoas não seja a distância. Que nós tenhamos um compromisso social e político de atender a todos. Espero que façamos disso um mundo melhor.