RPD || Entrevista especial: O Brasil está menos transparente, diz Gil Castello Branco

Economista fundador da Contas Abertas alerta que corrupção pode levar o país a perder no mínimo cerca de R$ 18 bilhões dos recursos federais usados no combate à pandemia.
Foto: Contas Abertas
Foto: Contas Abertas

Economista fundador da Contas Abertas alerta que corrupção pode levar o país a perder no mínimo cerca de R$ 18 bilhões dos recursos federais usados no combate à pandemia

Por Caetano Araújo e Davi Emerich

Com mais de 150 mil brasileiros mortos em plena pandemia do novo coronavírus, o Brasil está menos transparente no combate contra a corrupção. A avaliação é do economista Gil Castello Branco, 68 anos, fundador e atual diretor executivo da Associação Contas Abertas, entidade que fomenta a transparência, o acesso à informação e o controle social no país.

Entrevistado especial desta 24ª edição da Revista Política Democrática Online, Castello Branco acredita que, em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. “Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos”, avalia.

Gil Castello Branco realiza frequentemente palestras em workshops para empresários, e cursos em instituições acadêmicas e nos principais veículos brasileiros de comunicação (O Estado de S. Paulo, TV Globo, Folha de S. Paulo, Fundação Getúlio Vargas, USP, UnB e O Globo, entre outros). Foi professor visitante da Unicamp e colunista mensal dos jornais O Globo, Correio Braziliense e O Estado de S. Paulo.

Para ele, “é preocupante constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário”, lamenta. “A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência”, completa Castelo Branco.

Atualmente Castello Branco é o professor do curso EaD No rastro digital do dinheiro público: como fiscalizar os gastos da União, Estados e Municípios, organizado pela Knight Center for Journalism in the Americas, da Universidade do Texas, em parceria com a Contas Abertas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

 
Revista Política Democrática Online (RPD) – Antes das eleições de 2018, o senhor dizia que as propostas dos candidatos estavam ao nível de “lava pé”. Estamos no mesmo nível ou houve alguma variação?    
  

Gil Castello Branco (GCB) – Acho que realmente as propostas tiveram a profundidade de um lava pé. Só que hoje estamos inclusive com dúvidas quanto ao que irá acontecer em relação às propostas. Atualmente estão no ar o Renda Cidadã, o Pró-Brasil e até a intenção de prorrogar o auxílio emergencial. Mas são propostas que esbarram em uma série de dificuldades, a começar pelo teto de gastos. O país está quebrado. Já vinha rachado antes da pandemia, com gastos maiores do que a arrecadação por seis anos seguidos. Já começávamos o ano no vermelho: essa era a realidade reinante de 2014 a 2019. Em 2020 não foi diferente; a meta fiscal antes mesmo da pandemia já era de um déficit de R$ 124,1 bilhões (Tesouro, Previdência e Banco Central). A previsão era um pouco melhor do que no início de 2019, cuja meta era de um déficit de R$ 139 bilhões.  

Acontece que a pandemia chegou e nos pegou, eu diria, em uma situação fiscal que já era bastante difícil. A dívida pública, que era de 51,5% do PIB em 2013, passou para 79% do PIB, em setembro de 2019. Em 2020, com a pandemia, poderá chegar a 95% do PIB, ou mesmo ficar acima de 100% do PIB.  

O governo tem pouca margem de manobra, diante de outro fator marcante no crescimento de nossa despesa pública. No início da década de 2000, exatamente em 2002, nossa despesa obrigatória correspondia a 76,8% da despesa primária (excluídas as despesas financeiras). Na proposta do orçamento para 2021, as despesas obrigatórias representam 93,7% do PIB. Ou seja, a despesa discricionária para 2021, a que o governo poderá eventualmente mexer, é de apenas 6,3% da despesa primária. Chego a achar curioso que o Congresso Nacional passe quatro meses, desde que o orçamento foi entregue, em 31 de agosto, para discutir o que será feito com aproximadamente 6% da despesa não-obrigatória. Esse engessamento restringe as margens de ajuste do governo. O investimento, que é o gasto nobre – obras, compras de equipamentos para hospitais, escolas etc. – vai ficar cada vez mais tendendo a zero. Em 2020, ele é só 0,4% do PIB.    

RPD – Passamos nos últimos anos por vários processos de avanço no combate às práticas de corrupção. Da Lava Jato sobrou algum avanço? Hoje é mais difícil roubar do que era antes ou não? Houve excessos por parte da Lava Jato, no que ficou conhecido como “Vaza Jato”?    

GCB – O Brasil é historicamente um país corrupto. Vejam, por exemplo, os indicadores da Transparência Internacional, divulgados todos os anos, apresentando os índices de percepção da corrupção, criados em 1995. Nos primeiros anos da série, quando a escala era de 0 a 10, o Brasil nunca chegou sequer a 5. Costumo dizer que nós nunca passamos de ano no que diz respeito à corrupção, porque não obtínhamos sequer a nota 5. Depois, quando a escala passou a ser de 0 a 100, o Brasil de novo não conseguiu chegar à nota 50. Em 2019, com a nota 35, o Brasil ficou em 106º lugar, em um universo de 180 países. Há 5 anos seguidos estamos caindo nesse ranking, o que reflete a percepção de um país cada vez mais corrupto.

A Lava Jato, a meu ver, estava modificando esse quadro. Antes dela não se viam poderosos indo para a cadeia, fossem eles empresários, políticos, banqueiros etc. Tive a ocasião de visitar a força tarefa da Lava Jato em Curitiba logo no início, e vi o quanto era importante a união de diversas pessoas em diversos segmentos para que a corrupção e o crime organizado pudessem ser combatidos. Integravam a força tarefa profissionais especialistas no sistema financeiro, bancário, pessoas que tinham a possibilidade de fazer conexões com o exterior para a colaboração internacional, e conheciam a fundo a Receita Federal. Com esse apoio, os procuradores conseguiram formatar processos com tal consistência que escritórios famosos de advocacia, desta vez, não conseguiram invalidar provas na origem, o que acontecia até então com frequência. Isso não aconteceu com a Lava Jato. Os escritórios de advocacia, inclusive os grandes escritórios criminalistas, passaram a não conseguir inocentar rapidamente os seus clientes. Quando surgiu o instrumento da delação premiada, alguns escritórios tradicionais foram até substituídos por outros mais especializados nessa linha de defesa.  

O excelente trabalho da força-tarefa foi extremamente importante para que tivéssemos a impressão de que a corrupção iria diminuir no país. Pouco depois, surgiram as “10 Medidas Contra a Corrupção” ampliadas posteriormente para as “70 Medidas Contra a Corrupção”, um trabalho coordenado pela Fundação Getúlio Vargas e a Transparência Internacional, que contou com a participação de quase 300 entidades, inclusive a Contas Abertas.  

O que está acontecendo com a Lava Jato no Brasil não é muito diferente do que aconteceu com a Operação Mãos Limpas na Itália. Quando a operação começou a atingir poderosos, dos mais diversos naipes, inclusive políticos, a operação começou a ser fragilizada por diversos meios. E, hoje, dizem na Itália, que combater a corrupção depois da Mãos Limpas é mais difícil do que era anteriormente. Por quê? Porque justamente a Legislação foi sendo afrouxada de tal maneira que inviabilizou o combate mais acirrado à corrupção. E receio que isso possa acontecer aqui no Brasil, ou, pior, que já esteja acontecendo.  

A meu ver, a “Vaza Jato” não trouxe absolutamente informação alguma que pudesse consignar a parcialidade do juiz, a favor ou contra um determinado réu. Meu pai era promotor de Justiça e um de seus grandes amigos era um juiz. Nossas famílias se relacionavam e jamais essa relação afetou a atividade profissional de ambos. O promotor e o juiz representam o Estado. Não vi nas denúncias da “Vaza Jato” qualquer ato ou informação que pudesse configurar prejuízo aos investigados.  

RPD – Haveria, a seu juízo, algum paradoxo entre os resultados políticos colhidos pelo candidato à Presidência em sua campanha em favor do combate à corrupção e a conduta do chefe de Estado, sobre o qual pesam evidências constrangedoras de envolvimento com a baixa corrupção e com o alto crime organizado?  
GCB – Sem dúvida, o presidente da República se elegeu em função da promessa de continuar o trabalho anticorrupção. Hoje, entretanto, sinto-me completamente decepcionado com o que vejo no Brasil, uma espécie de pacto em favor da impunidade, que já vinha sendo desenhado há alguns anos. Basta lembrar aquela frase do Romero Jucá: “Nós precisamos estancar essa sangria”. Essa era e é a opinião de vários políticos, e inclusive de alguns ministros do Supremo, que chegavam a dizer que o combate à corrupção estaria prejudicando o crescimento do país. A meu ver, uma falácia.  

Atualmente, percebo a existência de um pacto entre os Três Poderes. Foram adotadas medidas no Legislativo e no Judiciário que dificultaram o combate à corrupção. Por exemplo, dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a mudança da interpretação da prisão a partir da condenação em segunda instância. Além disso, o presidente do Tribunal chegou a suspender a troca de informações que existia entre o Coaf, órgãos do Ministério Público e a Polícia Federal, decisão que foi, posteriormente, revista. Foram paralisadas investigações que a Receita Federal vinha fazendo, de forma absolutamente imparcial, em relação a algumas autoridades. No Legislativo, foi aprovado às pressas o projeto de lei de abuso de autoridade e não se tem observado pressa alguma na condução das propostas que podem recompor a prisão a partir de segunda instância. Foram também desidratadas as propostas anticorrupção apresentadas pelo então ministro Sérgio Moro, e engavetadas as 70 Medicas Contra a Corrupção, de iniciativa da sociedade civil.    

Nessa mesma linha, o presidente da República, preocupado com a defesa dos seus familiares atingidos por denúncias e por evidências de irregularidades, tomou várias decisões como rasgar a carta branca que ele tinha dado ao então ministro da Justiça Sérgio Moro, contrariando completamente o discurso de campanha, para influir nas decisões da Polícia Federal, o que na minha percepção, ficou absolutamente caracterizado, qualquer que seja a consequência. Além disso, indicou a dedo um Procurador-Geral da República que, muitas vezes, parece mais um advogado criminalista do que propriamente um membro do Ministério Público. Recentemente, o presidente indicou um novo ministro para o STF com base na opinião de políticos investigados e de atuais ministros da Corte que nunca se caracterizaram pelo enfrentamento rigoroso à corrupção.

Em resumo: creio que os instrumentos de combate à corrupção estão sendo enfraquecidos, tal como ocorreu na Itália. Temo que estejamos retrocedendo décadas no que diz respeito efetivamente ao combate à corrupção, com certa conivência da cúpula dos Três Poderes.    


RPD – Como você avalia a questão da reforma da Previdência, que também não é um privilégio do governo Bolsonaro, até porque várias medidas para reformá-la foram tomadas em governos anteriores, desde Fernando Henrique, passando por Lula e Dilma?    
GCB – A questão da Previdência, de fato, precisava ser novamente enfrentada, o que já vinha sendo discutido há muito tempo, há vários governos. A Previdência é a segunda maior despesa do país, após os juros. Para 2021, mesmo depois da reforma, apenas as despesas com a Previdência e Pessoal corresponderão a mais de R$ 1 trilhão. Dessa forma, de uma despesa primária de aproximadamente R$ 1,5 trilhão, cerca de R$ 1,077 trilhão serão gastos com Pessoal e Previdência. A reforma, porém, manteve privilégios, como por exemplo em relação aos militares que acabaram saindo com vantagens. Em decorrência da pandemia, a economia de R$ 700 bilhões que seria obtida em 10 anos com a reforma foi completamente consumida no combate ao Covid-19. A reforma também não alcançou os Estados e Municípios que continuam em uma situação extremamente difícil.    

RPD – E quanto às privatizações e às outras reformas, como a tributária?  
GCB – As privatizações, realmente, ainda não saíram do papel. Deve ter sido uma enorme frustração para o ministro Paulo Guedes, um liberal da escola de Chicago, como também para muitos do grupo que ele trouxe para o governo. Quanto à reforma tributária, existem, hoje, três propostas: uma na Câmara, uma no Senado, e outra do governo. Em outras palavras, quem tem três, não tem nenhuma. E não acredito que avancem, não só em função da pandemia, mas, também, das eleições. O governo, cada vez mais, vem adotando linha populista, em que a preocupação central é mais a eleitoral do que com a responsabilidade e a austeridade fiscal, fato que já afeta alguns parâmetros da economia.

O real foi a moeda que mais se desvalorizou nos últimos tempos dentre todos os países emergentes. A taxa de juros futuros está subindo e o governo poderá ter dificuldades para rolar a dívida. Já é perceptível a fuga de capitais, com cerca de R$ 88 bilhões deixando a Bolsa de Valores, o dobro do que aconteceu em todo o ano passado. A bolsa opera abaixo de 100 mil pontos, sintoma de insatisfação do mercado financeiro. A inflação está em processo de aceleração, sobretudo no segmento da alimentação. Trata-se, enfim, de uma série de parâmetros que revelam que os agentes econômicos, de uma maneira geral, não estão mais acreditando que o governo irá seguir com reformas e no caminho da responsabilidade fiscal.    

Agora, a cereja desse bolo populista é realmente a situação do Renda Cidadã e do Pró-Brasil. A preocupação maior do governo deixa o mercado de cabelo em pé. Nitidamente, a preocupação do governo não é apenas a de ampliar a base do Bolsa Família e sim fazer com que o valor médio desse novo programa, o Renda Cidadã, chegue o mais perto possível dos R$ 300,00 que está sendo pago como auxílio emergencial e alavancou a popularidade do presidente. Só que sair do atual valor médio de R$ 191,00 do Bolsa Família para valor próximo de R$ 300,00, além do aumento da base, irá significar um aumento relevante da despesa. O orçamento já está combalido e o país quase quebrado.  

Neste quadro fiscal extremamente difícil, há hipóteses do endividamento chegar ao final deste ano bem perto de 100% do PIB. A Instituição Fiscal Independente, do Senado Federal, trabalha com três cenários. No otimista, a dívida bruta do governo chegará a 92% do PIB; no cenário base atingiria 96,1% do PIB; no cenário pessimista a dívida alcançaria 101,3% do PIB. Quanto ao déficit primário, segundo estimativa do próprio governo, o Brasil só deverá reequilibrar suas finanças, ou seja, equilibrar receita e despesa, em 2026/2027. Mas, no cenário pessimista da Instituição Fiscal Independente, isso só irá acontecer no início da década de 2030.    

RPD – Com a sua autoridade de dirigir “Contas Abertas”, o Brasil de hoje é mais ou menos transparente em relação a governos anteriores?    
GCB – O Brasil está menos transparente. Lembro que, logo nos primeiros meses do governo, houve a tentativa de fazer com que os documentos secretos pudessem ser declarados como tal por uma quantidade enorme de pessoas. Ao se aprovar a Lei de Acesso à Informação, a ideia era justamente limitar o número de pessoas com essa capacidade, para que fosse possível manter maior controle sobre os documentos secretos e quem decidiria pelo sigilo maior. O Fórum de Acesso às Informações Públicas tem interpelado a Controladoria Geral da União sobre situações de restrição à transparência. Em meio à pandemia, a redução da transparência é ainda mais preocupante. Já foram autorizados para o enfrentamento ao Covid-19, só na área federal, cerca de R$ 600 bilhões; na hipótese (otimista) de que 3% desses recursos venham a ser desviados, R$ 18 bilhões serão abocanhados por criminosos. A Lava Jato de Curitiba conseguiu recuperar efetivamente pouco mais de R$ 4 bilhões, e tem o objetivo de, no médio/longo prazos, recuperar cerca de R$ 14 bilhões. Estamos, portanto, diante da possibilidade de uma fraude enorme, em volume inédito, em tão pouco espaço de tempo, durante a pandemia. Isso supondo o percentual de 3%. Pelo que já tomamos conhecimento de desvios no pagamento de auxílio emergencial, na compra de respiradores, máscaras, álcool em gel, toucas, na construção de hospitais de campanha etc., serão apenas 3%?  O maior antídoto contra a corrupção é a transparência.

Algo preocupante é constatar que, desta vez, as acusações não pairam sobre um, dois, ou três partidos políticos. Não dizem respeito a um governador ou a um secretário. A corrupção está acontecendo de uma forma horizontal, e merece ampla reflexão. A única arma de que dispomos é a transparência, até mesmo porque as medidas de enfrentamento à corrupção tiveram caráter emergencial. Esta emergência, embora indiscutível, pode ter gerado facilidades maiores para os corruptos.  

RPD – Ou seja, a tendência é pessimista.    
CB – Sim. A emergência não revoga os princípios constitucionais de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A emergência não dispensa a fiscalização rigorosa por parte do Ministério Público, Tribunais de Contas e da própria sociedade. Tal como já dizia há um século um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, “a luz do sol é o melhor dos desinfetantes”. A transparência é essencial para que exista o controle social. Repito, na hipótese de desvio de 3% do montante destinado ao enfrentamento à pandemia, a corrupção atingiria a R$ 18 bilhões. A corrupção no Brasil pode ter-se tornado mais horizontal do que muitos imaginam. 

Privacy Preference Center