Ex-juíza e ex-deputada federal avalia que, apesar da relação conflituoso entre o Excutivo, o Judicário e o Legislativo atualmente, o Brasil ainda vive uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável, mas que não oferece riscos à democracia
Por Caetano Araújo e Cleomar Almeida
“Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil”, relembra a ex-juíza e ex-deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, sobre ampla investigação contra o crime organizado no Brasil, da qual fez parte e que a tornou conhecida nacionalmente, em 1993. Entrevistada especial desta 17a edição da Revista Política Democrática Online, Frossard aposentou-se do Judiciário em 1998 e, em 2002, foi eleita deputada federal com a maior votação para o cargo nas eleições pelo Rio de Janeiro.
Denise Frossard destaca que, né poca em que atuou contra o crime organizado, O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. “Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes.”
“Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos”, completa Frossard.
Sobre o momento atual que o país atravessa, com o governo de Jair Bolsonaro e os atritos entre o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, Frossard diz que não vê risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. “Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia, não há qualquer transação – é ela ou ela”, destaca.
Na entrevista especial que concedeu à Revista Política Democrática Online, Denise Frossard também destaca o papel das instituições no Brasil. “Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato”, alerta.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:
Revista Política Democrática (RPD): Tendo sido a precursora na difícil e corajosa tarefa de conduzir ampla investigação do crime organizado no Brasil, a senhora avalia que valeu a pena?
Denise Frossard: Antes de dizer se valeu a pena ou não, é importante destacar que vivemos hoje, no Brasil uma adolescência jurídica, política e histórica e, por isso mesmo, instável. Agora, você me pergunta se valeu a pena. Vejamos.
Há mais de 25 anos, veio às minhas mãos um processo que de forma inédita implicava o reconhecimento ou não da existência de uma organização criminosa no Brasil do tipo mafioso, que se constituiu, enfim, para cometer crimes – não um crime específico, mas que se constitui para ser uma empresa cuja “mercadoria” era – e é – o crime. Era uma situação sem precedentes no Brasil. Embora eu fosse muito jovem à época, não hesitei em enfrentar o desafio. Julguei e decidi que havia, sim, no Brasil uma organização criminosa do tipo mafioso, numa sentença que se apoiava em jurisprudência italiana, pela ausência de precedente no Brasil.
Aquilo foi um marco. A partir daquele momento, ficou muito claro para a sociedade que aquele grupo condenado, conhecido como “a cúpula do jogo dos bichos” (mas o processo não dizia com a atividade contravencional do “Jogo dos Bichos”) que até então eram pessoas muito bem aceitas na sociedade, recebidas e até homenageadas por políticos, dos quais recebiam as maiores comendas oficiais, frequentadores de todos os Palácios da República. De fato eram – como são – criminosos, cercados de assassinos a soldo, ligados a vários homicídios, tráfico de drogas, armas etc… A partir daquele momento, isto ficou tão claro que quem quisesse frequentar aquele grupo em seus camarotes momescos ou tribunas VIPs de jogos de futebol que o fizesse, mas não mais poderiam alegar que não soubessem de quem se tratava. Entretanto, embora a linha divisória tenha sido perfeitamente traçada, isto não tirou da cúpula o poder, que permanece, se solidifica e se moderniza, até hoje, sem, contudo, perder seu gosto pelos “acertos de contas” violentos. Os policiais, então usados por eles pelo suborno, conforme consta da Sentença, hoje são os milicianos… apenas uma mudança na nomenclatura…
Então, valeu a pena? Certa vez um brilhante advogado criminalista do Rio, Dr Virgilio Donnici, me disse : “Excelência, esse negócio de crime organizado foi a Senhora quem inventou aqui”. Foi mais ou menos isso, mas a invenção foi do Ministério Público, sob a batuta do então Procurador Geral da Justiça, Dr Antônio Carlos Biscaia. A partir da condenação da cúpula pelo vetusto então Art. 388 do Código Penal – Formação de quadrilha ou bando -, já que até então não havia previsão legal para condená-los por lavagem de dinheiro dentre outros crimes, senti-me como devem ter-se sentido os Juízes que condenaram Al Capone: sem instrumentos legais e cercados de policiais corruptos. Então, abriu-se ampla discussão por todo o país, envolvendo não só operadores do direito, advogados, magistrados, Ministério Público, intelectuais que entenderam o risco de os Estados serem capturados pelas organizações criminosas – e já tínhamos um esboço disto na vizinha Colômbia e, mais distante, na Itália. Houve uma discussão profícua sobre como reformar nosso ordenamento jurídico. Esse debate permitiu-nos avançar, pouco a pouco, na organização de nosso ordenamento jurídico que nos habilitasse a enfrentar o crime organizado.
O Congresso Nacional entendeu a importância da proposta e contribuiu ao longo de uns 20 anos com legislação absolutamente moderna, de acordo com as melhores legislações dos países mais adiantados. Estabeleceu-se cooperação com países que combatiam a lavagem do dinheiro, o crime organizado, o tráfico de entorpecentes. Deixamos de ser aquela ilha onde, conforme eu disse em Davos no World Economic Forum de 1996, sob a presidência da Procuradora Helvética Carla Dal Ponte, no Brasil, a única penalidade para a lavagem de dinheiro seria a excomunhão, já que o Papa havia condenado essa atividade!
Valeu a pena? Claro que valeu, pois foi, a partir dali, que chegamos a Lava Jato. Relembro que vi as entranhas do crime organizado não só como Juíza de Direito, mas também como parlamentar, quando participei, pelo antigo PPS, hoje Cidadania23, da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito que acabou por desvendar a tentativa de captura do Estado brasileiro pelo crime organizado, conforme é do conhecimento de todos. Custou-me muito? Talvez a própria vida… não se pode esquecer que sofri três tentativas de assassinato (ao que eu saiba) e que a conta com o crime organizado não se fecha nunca…
RPD: Justifica-se, então, sua ideia de que as boas leis sempre se originam dos maus hábitos?
DF: Sempre, por paradoxal que possa parecer. Mas não bastam as boas leis, como as que temos hoje. É preciso avançar nos ajustes para que as leis sejam mais explícitas, mais específicas. E estamos num ótimo momento para atuar neste sentido, situando-nos em meio à reconstrução do sistema político e do sistema tributário, depois de já termos iniciado o processo de reforma da previdência.
Hoje vivemos um momento de certa balbúrdia, um desacerto entre os três Poderes. Parece um casal a três… Há dúvidas sobre os limites da competência de cada um. Na raiz do embate, está o uso do dinheiro público. Quer dizer, a quem cabe decidir o destino do dinheiro do povo? Ao Presidente da República? Ao Poder Legislativo? Ou a última palavra – acertando ou errando – será do Supremo Tribunal Federal? A solução desse impasse seria fácil com a submissão de todos perante a lei. Mas o que fazer se a lei é subjetiva demais e abre espaços para todo tipo de interpretação? Esse é o problema.
Caímos, então, num dos problemas maiores da relação entre os três Poderes no Brasil, e até entre o Estado e os cidadãos. Daí o Judiciário ser chamado para interpretar a lei com larga liberdade, o que leva muita gente a supor tratar-se de invasão do Judiciário na competência do Legislativo, mas não é. É decorrência da falta de explicitação e especificação de nossas leis.
Nos Estados Unidos, por exemplo, quando um promotor faz uma denúncia, ele menciona a lei tal, o precedente qual, o fulano ou cicrano envolvido, tudo seco e objetivo, porque o ordenamento jurídico do país é explícito e específico. Já, no Brasil, não é raro uma denúncia citar Machado de Assis e outras fontes literárias. Nada contra Machado, mas qual é a denúncia? Qual a acusação?
De sua parte, o juiz usa uma linguagem que ninguém entende. Basta ir a um julgamento e perguntar-se: “Mas o que é isto, o que estão dizendo?”. E aqui eu faço um mea culpa. Eu só caí nessa realidade quando vi nos olhos dos meus acusados que eles só me entendiam quando, depois de ler e fundamentar uma sentença altamente elaborada, com fortes imagens literárias, quase uma “ sentença em compotas” (risos), que eles só entendiam e se tranquilizavam quando eu entrava na dosimetria da pena, na quantificação da penalidade, enfim, nos números!
A modernização da legislação brasileira, portanto, se impõe, e passa, a meu ver, pela tarefa de tornar as leis mais explícitas e mais específicas, isto a despeito dos enormes avanços que já tivemos nestes últimos 25 anos.
RPD: As manifestações a que a senhora se referiu não poderiam ser interpretadas como uma espécie de apropriação de bandeiras que são republicanas, de luta contra a corrupção, para uma finalidade que é um pouco, digamos assim, alheia a isso? Afinal de contas, parte-se de uma bandeira justa e louvável, para chegar à conclusão de atacar dois Poderes da República. Qual seria, então, a fronteira entre a luta pelas instituições, que são republicanas e para que elas se mantenham republicanas, e uma possível afronta à democracia.
DF: Volto à minha visão de que nós estamos em uma adolescência política, não só jurídica, e também histórica, e por isso mesmo instável. Quer dizer, essa convocação do dia 15 seria perfeitamente aceitável se fosse para protestar contra posturas destes ou daqueles nossos representantes, mas, se for para propor extinção de qualquer dos poderes da República ou propor a volta de ditaduras, é um gravíssimo atentado contra a ordem pública, podendo até ser passível de criminalização de quem fomenta tais comportamentos.
As ruas e praças são os espaços para protestarmos por melhores condições de vida e de sensibilizarmos os Poderes Constituídos de acordo com nossas propostas – nem sempre justas, nem sempre as melhores e desde que não sejam criminosas. Somos regidos pela Constituição Federal, que os dá liberdade para isto. Mas somos uma Democracia Representativa. De 4 em 4 anos, podemos trocar aqueles que sentimos que não nos representam, e é isto que vem sendo feito por nós desde o fim do movimento que se diz revolucionário. Só se aprende a andar, andando e, milagre, se anda! E isso é muito comum quando se tem essa adolescência política que nós vivemos.
Mas eu não vejo risco algum para a democracia, nenhum risco de golpe. Isso não existe. Apesar de ainda adolescentes, o Povo já entendeu que, quanto à Democracia, não há qualquer transação – é ela ou ela. Acabo de chegar ao Brasil, vindo da Tunísia, e encontro essa convocação do Executivo de uma passeata para protestar contra alegada ingerência do Legislativo e do Judiciário. Mas eu nunca vi isto! Um Presidente tem na mão caneta e pulso e carrega consigo os votos que obteve nas urnas, que o legitimam. Deve dialogar com o Legislativo acerca de como governar, nos limites de cada um. É uma coisa de maluco um Executivo no exercício do poder convocar passeatas! Muitas vezes as pessoas perdem a razão pela forma como se manifestam. Isto até existiu num passado sofridamente recente, aqui mesmo, na América do Sul. Mas, alô, o Muro de Berlim já caiu há algumas décadas!
RPD: Sua expressão “adolescência jurídica, adolescência política” faz lembrar Ralf Dahrendorf, quando, em uma suposta carta a um cidadão do leste europeu, recém-egresso do totalitarismo, disse que “a democracia é uma forma de governo, não é um banho turco das vontades populares”, com o que indicava que se tem de seguir regras, respeitar princípios (cf. Reflections on Revolution in Europe, p. 12/13). E, a esse respeito, nada mais relevante do que a Constituição do país. A referida manifestação, ao questionar dois Poderes da República, não estaria sendo antidemocrática?
DF: Claro que se a manifestação é para pregar extinção de Poderes da República, como eu disse, não só é antidemocrática, mas também pode, em tese, configurar eventual conduta criminal. Perfeita a referência à Constituição. É ela que rege nosso Estado. A Constituição de 1988 é uma bela peça, que, no entanto, constitucionalizou tudo – até o exercício da locação foi constitucionalizada, de modo que permite ao Supremo se manifestar até mesmo sobre contratos de aluguel. Mas é a lei que nos rege. Podemos alterá-la, emendá-la (e já o fizemos inúmeras vezes), mas certas cláusulas não podem ser alteradas, são as chamadas Cláusulas Pétreas. É compreensível e aceitável a pressão sobre o Congresso, a partir das ruas. Mas não se pode perder de vista que nossa Democracia é Representativa. Mais atenção e cuidado na escolha de quem irá nos representar. Ao menos por 4 anos.
RPD: A gente viu nos últimos anos que a luta contra o crime organizado, depois do marco inicial ao qual a senhora se referiu, fez avanços expressivos. Mas, para quem está de fora, o ritmo desse combate parece ter esmorecido, de uns tempos para cá. Quais seriam os principais entraves existentes a essa campanha? E o que nós, cidadãos, e os nossos representantes deveríamos fazer para removê-los?
DF: Nesses 20 anos, em que nós saímos pelo Brasil falando que tínhamos de ter um parque legislativo que permitisse ao juiz atuar contra o crime organizado, ele foi concedido pelo Congresso Nacional. Mas, quando isto passou a atingir integrantes do próprio Congresso, do próprio Poder legislativo – e, por que não dizer, também do próprio Judiciário –, houve e há reação que entendo natural, esperada, de reação das corporações com muitos de seus membros envolvidos e que se julgavam ao abrigo de serem alcançados pela Lei. Foi isto exatamente o que ocorreu na Itália. E, como é ele, o Legislativo, que legisla, ele reage colocando freios, para evitar o atingimento. Mas, dentro dele mesmo, vem a reação contrária e aí está a força da Democracia, nós vamos colocando lá dentro aqueles que melhor irão entender nossa vontade. Essa é a luta que nós, cidadãos, vamos ter de travar sempre. E não pensem que vai ser fácil. Tudo em muito dependerá de quem nós colocarmos no Congresso, não é verdade?
Não tem outra saída além do cumprimento à lei, para todos. Com isto eu quero dizer que quando se tem um juiz que se desvia, é importante que exista um órgão que coloque o dedo nesse juiz e arranque a sua toga. Quando é o caso de um parlamentar que se desvia, da mesma forma que lhe seja retirado o mandato. Estes instrumentos nós temos, mas volto a dizer, é preciso que sejam mais claros, mais específicos, mais explícitos. E o principal: o combate à impunidade. Enfim, precisamos passar à maturidade política, jurídica e histórica, mas parodiando Shakespeare, é preciso cuidado, pois deve ser triste envelhecer antes de se tornar sábio. Avante!