Entrevistado especial desta 23ª edição da Revista Política Democrática Online, Everardo Maciel avalia que a proposta de reforma tributária apresentada pelo governo Bolsonaro tem a intenção de cobrar mais do setor de serviços, que sofrerá com o aumento da carga
Por Caetano Araujo e José Luiz Oreiro
A reforma tributária voltou à pauta do Congresso Nacional neste segundo semestre de 2020. Além das propostas em tramitação na Câmara dos Deputados (PEC 45/2019) e no Senado Federal (PEC 110/2019), o governo Jair Bolsonaro enviou aos parlamentares um texto próprio para ser analisado. Como essas mudanças podem afetar o cidadão? O ex-secretário da Receita Federal durante os anos de 1995 a 2002 (Governo FHC), Everardo Maciel, responde a essa e a outras questões na entrevista especial desta 23a edição da Revista Política Democrática Online. Everardo Maciel também é consultor jurídico e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD) – A proposta da reforma tributária do governo não promete harmonização de tendências e, menos ainda, horizonte promissor para o contribuinte. Quais são os problemas centrais dessa proposta?
Everardo Maciel (EM) – Existem hoje três propostas de reforma tributária, em tramitação no Congresso Nacional: uma oriunda da Câmara dos Deputados (PEC nº 45); outra apresentada no Senado (PEC nº 110), e, por fim, a proposta de criação de uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), encaminhada pelo Poder Executivo, para a qual se solicitou tratamento de urgência no Congresso Nacional. Logo em seguida esse pedido de urgência foi retirado, alegando-se que ele estava obstruindo a tramitação de um projeto de alterações no Código de Trânsito. A alegação é claramente inverossímil.
O projeto de instituição da CBS, por sua vez, seria acompanhado de outras iniciativas, sempre anunciadas de forma imprecisa e jamais encaminhadas. Definitivamente, não sei qual é a proposta do governo. Por aí, já se pode ver a confusão que envolve o assunto.
RPD: Por que isso?
EM: A matéria tributária é muito árida, o que faculta muitas especulações, em geral recheadas de chavões e dogmatismos, além de falsas ilações.
Um chavão recorrente é a pretensão de simplificar o sistema tributário brasileiro. Essa pretensão se traduz, com frequência, em fusão de tributos. Juntar tributos não necessariamente simplifica. Um exemplo disso é a proposta de criação da CBS, a partir da fusão do PIS com a COFINS.
PIS e COFINS são contribuições regidas por uma mesma legislação e pagas por um mesmo documento de arrecadação. A diferença se dá não no âmbito tributário, mas no da destinação das receitas. O PIS financia o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES, e a COFINS é uma das fontes de financiamento da seguridade social.
A determinação do valor a pagar na sistemática cumulativa do PIS/COFINS consiste em mera multiplicação de uma alíquota por uma base de cálculo. Já na CBS, proposta pelo governo, é bem diferente. Veja o que estabelece o artigo 11 do projeto de lei: “É vedada a apropriação de crédito em relação a bens e serviços vinculados a receitas não sujeita a incidência ou isenta da contribuição…Na hipótese de haver bens e serviços vinculados simultaneamente a receitas que permitam e a receitas que não permitam a apropriação de tais credos, a vinculação a cada tipo de receita será feito por meio da aplicação de um dos seguintes métodos. … Apropriação direta por meio de um sistema de contabilidade de custos integrado e vinculado com a escrituração”. Evidente que não há nenhuma simplificação; ao contrário, a apuração se tornaria bem mais complexa.
A propósito, registro que o modelo cumulativo de tributação do PIS/COFINS, que se pretende extinguir, é justamente o que está sendo adotado para taxação dos serviços digitais em países da Europa e até da Ásia. Não é uma é tributação de consumo, mas de renda. No Brasil, ao tempo em que se diz que tributamos demasiadamente o consumo em comparação com a renda, se propõe, na PEC 45, fundir o PIS/COFINS com os impostos de consumo (ICMS, ISS, IPI). Afirma-se uma coisa e se faz justamente o oposto, em completo desencontro entre o discurso e a ação.
RPD: Qual sua opinião sobre o imposto de bens e serviços, que seria uma espécie de IVA para a economia brasileira, uma das propostas que está no Congresso Nacional, baseada em estudo do Centro de Cidadania Fiscal? Resolve o problema tributário brasileiro? É uma má ideia?
EM: Eu acho uma péssima ideia. Repetem-se chavões. Há de se esclarecer que o IVA não é um imposto, é uma forma de extração. Tributação do imposto de renda no regime do real é um imposto sobre o valor agregado. O primeiro país do mundo que adotou no consumo o imposto do valor agregado até o varejo foi o Brasil, com o ICM, imposto que, entretanto, se deformou muito.
A intenção é fundir PIS, COFINS, ICMS, ISS e IPI, mediante criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que conviveria com um Imposto Seletivo, cuja base de incidência não é clara.
Ora, o IPI já é um imposto seletivo. Caso se pretenda reduzir sua base de incidência, basta atribuir alíquota zero aos produtos que se pretenda desonerar por meio de um simples decreto. A única explicação para essa esdrúxula solução seria uma agenda oculta, como, por exemplo, acabar com a Zona Franca de Manaus e Áreas de Livre Comércio da Amazônia.
A rigor, as propostas de criação do IBS ou da CBS representam monumental redistribuição de carga tributária entre os setores, com inevitável repercussão sobre o preço dos bens e serviços.
Essa redistribuição não é divulgada. Omite-se convenientemente para interditar o debate, obrigando os estudiosos e os próprios contribuintes a fazerem os cálculos das repercussões, para, em seguida, veiculá-los na mídia e no Congresso.
RPD: Quem ganha e quem perde com essas propostas?
EM: A lista de perdedores é imensa. Começa com os mais 850 mil contribuintes, tributados no regime do lucro presumido do IRPJ e cumulativo do PIS/COFINS, alcançando pequenos e médios prestadores de serviço, comerciantes e industriais. Nesse contingente, incluem-se os serviços de educação e saúde, o que inevitavelmente implicaria elevação dos preços das mensalidades escolares e das consultas médicas.
Para justificar o aumento da tributação dos serviços de educação e saúde, argumenta-se que quem faz uso desses serviços são ricos, desconhecendo a imensa demanda da classe média. De mais a mais, essa oneração haveria de sobrecarregar o SUS e a rede pública de ensino, gerando custos para o setor público.
Outro alvo desse aumento de carga tributária é o agronegócio, precisamente o setor quem tem sustentado o modesto desempenho do PIB brasileiro. Pretende-se tributar o setor pesadamente, na contracorrente do que se faz no resto do mundo.
No Brasil, 98% dos produtores rurais são pessoas físicas equiparadas a jurídicas, que produzem e vendem para a indústria processadora sem transferir crédito.
A indústria processadora de produtos de origem animal e vegetal toma um crédito presumido, na apuração do PIS/COFINS, que varia de 40 a 60%.
No projeto da CBS, o crédito presumido é reduzido para 15%, e se elimina a isenção dos insumos. Em decorrência, haveria redução da margem do produtor ou da indústria ou então elevação dos preços para o consumidor final, o que é lamentável.
Na longa lista de perdedores, até o livro foi incluído. Desde 1946, o livro é desonerado de tributos, por força de um projeto apresentado por Jorge Amado, deputado constituinte eleito pelo Partido Comunista Brasileiro e integrante da bancada da Bahia. A remuneração de um escritor corresponde a 10% do preço de capa. A CBS pretende taxar os livros com uma alíquota de 12%, o que equivale a confiscar aquela remuneração. Além disso, os livros didáticos representam cerca de 50% do total comercializado, sendo que grande parte é adquirida pelos governos. Trata-se, portanto, de uma ideia estapafúrdia. Mais grave, sem nenhum valor arrecadatório.
No projeto do IBS, as instituições financeiras são as principais ganhadoras, que seriam totalmente desoneradas da vigente tributação do PIS/COFINS, cujo montante anual é de 25 a 30 bilhões de reais.
Acrescente-se que as propostas do IBS e da CBS preveem cobrança com alíquota única, que é a forma mais regressiva de tributação do consumo, como mostra estudo recente produzido pela OCDE.
RPD: Existem problemas no ICMS e no ISS?
EM: Sim, existem, como de resto em todos os lugares do mundo. Por exemplo, as fraudes no IVA europeu, tão elogiado nestas bandas, chegam a 50 bilhões de euros anuais, de acordo com dados divulgados pela Procuradoria Geral da União Europeia no ano passado.
O ICMS tem problemas relacionados com a grande diversidade de alíquotas nominais e efetivas, devolução de créditos acumulados. O disciplinamento do ISS é claudicante. E ambos carecem de regras para a prática da competição fiscal e prevenção da guerra fiscal.
A solução dos problemas desses impostos é perfeitamente viável pela via infraconstitucional, mantida a atual competência tributária dos Estados e dos Municípios.
RPD: Como prevenir a guerra fiscal?
EM: Aqui, se costuma confundir guerra fiscal com competição fiscal, que é algo inerente à história dos tributos em todo o mundo desde sempre. Guerra fiscal é a competição fiscal ilícita, contra a lei.
A guerra fiscal do ICMS tomou corpo depois da Constituição de 1988, por dois motivos: primeiro, porque inexiste até hoje a lei complementar para disciplinar a concessão e revogação de benefícios fiscais, conforme previra aquela Constituição, preservando-se o regramento previsto na Lei Complementar nº 24, de 1975, cujas sanções pelo seu descumprimento tornaram-se letra morta em razão de mudanças constitucionais posteriores; segundo, porque a União demitiu de si a responsabilidade pela coordenação do ICMS, com a extinção do órgão por isso responsável, na reforma administrativa do governo Collor.
Exigência sem sanção e tributação de índole nacional sem coordenação criaram as condições propícias para expansão da guerra fiscal do ICMS. O remédio para esse problema é tão somente editar a lei complementar, fixando os critérios para concessão e revogação de benefícios e as sanções pelo descumprimento, bem como restabelecer a coordenação nacional.
A proposta do IBS veda a concessão de benefícios fiscais, substituindo-os por subsídios consignados na proposta orçamentária anual. Isto é de um irrealismo atroz ou é uma forma dissimulada de extinguir a competição fiscal, indispensável à correção das desigualdades regionais de renda, como preconizado na Constituição. Qual investidor que vai fazer um investimento acreditando que durante dez anos os orçamentos anuais irão consignar subsídio para sua atividade, concorrendo com gastos públicos clássicos, como educação, saúde e segurança pública?
RPD: E quanto à oportunidade do debate sobre a reforma tributário?
EM: Creio que é um debate completamente inoportuno, que consome a atenção política e a energia política necessárias ao enfrentamento da pandemia e seus graves desdobramentos, em termos econômicos e sociais.
Afora isso, é uma discussão desabastecida de um diagnóstico do sistema tributário brasileiro, alternativas de soluções e mensuração dos impactos sobre contribuintes, preços e entes federativos.
Se você quer tributar mais a escola e a consulta médica e reduzir a tributação de geladeiras, que o diga e abra a discussão na sociedade. O que não pode é tratar de matéria tão sensível, com agendas ocultas. Não foi apresentada uma página sequer mostrando as repercussões das propostas.
É completamente desarrazoado discutir reformas estruturais em meio a uma pandemia, com base em apresentações em PowerPoint e videoconferências.
RPD: Qual é, então, o principal problema tributário brasileiro?
EM: O principal problema tributário brasileiro, à luz da minha experiência, é o processo tributário, que compromete a segurança jurídica e inibe investimentos.
Só no âmbito federal, os litígios tributários, no final de 2018, totalizavam R$ 3,44 trilhões. Os processos de execução da dívida ativa representam 38% dos 80 milhões de processos em tramitação na Justiça brasileira.
Esses litígios têm três fontes: o fisco, o contribuinte e a indeterminação de alguns conceitos.
A litigiosidade gerada pelo fisco decorre da inexistência de limites para o lançamento. Autos de infração insubsistentes geram custos financeiros e reputacionais apenas para o contribuinte. Não há sucumbência para o fisco. A solução para esse problema consiste em estabelecer a integração entre o processo administrativo e o judicial, como havia sido proposto por grandes tributaristas, como Rubens Gomes de Sousa, Gilberto Ulhoa Canto e Geraldo Ataliba. Essa integração permitiria que a parte vencida no processo administrativo pudesse requerer revisão da decisão em um tribunal do Judiciário.
A segunda fonte de litígio é o contribuinte. A possibilidade de questionamento da matéria tributária no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, isto é, perante um juiz de primeira instância, pode gerar desequilíbrios concorrenciais entre contribuintes e insegurança jurídica, pois o tempo médio entre o ingresso da ação e o desfecho no STF é de 20 anos. É nesse contexto que prospera a indústria das teses, pois a matéria tributária na Constituição tem extensão amazônica. Apenas como exemplo, o número de palavras do capítulo tributário da Constituição Brasileira é o dobro do número de palavras de toda a Constituição americana. É, por conseguinte, enorme a possibilidade de questionamento constitucional da matéria tributária.
A terceira fonte de litígio são conceitos indeterminados que motivam controvérsias administrativas e judiciais, como planejamento tributário abusivo, dedutibilidade do ágio, interposição fraudulenta no comércio exterior.
Há claramente a necessidade de conferir-se nova construção normativa para esses conceitos, promovendo-se a resolução do contencioso atual por meio de transação.
Na pauta de problemas tributários, deve ser acrescentado o burocratismo, completamente esquecido nos projetos de reforma tributária. Por fim, há os problemas específicos dos tributos, como mencionado.
RPD – Em relação aos perigos de expansão, fortalecimento, dos paraísos fiscais no mundo e o que isso pode trazer muitos problemas para nós, quais seriam as diretrizes do governo de forma a enfrentar esse problema?
EM – O Brasil foi o primeiro país do mundo que conceituou, objetivamente, paraíso fiscal. Em legislação de 1996, ficou estabelecido que paraíso fiscal é um país ou dependência que tributa imposto de renda da pessoa jurídica com alíquota igual ou inferior a 20%. Além disso, estabeleceu contramedidas para os negócios com paraísos fiscais, ao elevar de 15 para 25% a retenção na fonte nas operações de remessa e tornar obrigatório o ajuste por preços de transferência ainda que o negócio fosse realizado por empresas não vinculadas.
Somente em 1918, a União Europeia estabeleceu critérios para qualificar uma jurisdição tributária como paraíso fiscal. Ainda que tenha admitido a possibilidade de adoção de contramedidas, nenhum país as implementou, sem que fosse surpreendente, porque, na União Europeia, se encontram vistosos paraísos fiscais, como Luxemburgo e Irlanda.
A erosão das bases tributárias, como deslocamento de lucros para paraísos fiscais, é seguramente o maior tributário contemporâneo. Dois exemplos dessa patologia: os investimentos diretos em Luxemburgo são equivalentes aos efetivados na China e nos Estados Unidos; os investimentos em empresa de fachada no mundo são maiores que o PIB da Alemanha e da China.
Esse problema é tão grave que, em 2013, o G-20, reunido em Moscou, decidiu conferir mandato à OCDE para desenvolver um programa chamado BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), com o objetivo de indicar soluções para esse problema. Apesar de muito ambicioso, o programa não apresentou, até agora, nenhum resultado concreto.
RPD: Você considera os problemas da centralização tributária um óbice à reforma? E a progressividade dos nossos tributos é uma outra questão problemática?
EM: Começo com a centralização. É difícil falar se há ou não centralização tributária, quando sequer temos um federalismo fiscal bem estruturado. Não se sabe com clareza a repartição de responsabilidades públicas entre os entes federativos. Então como se falar em centralização? A precisa partilha de receitas coexiste com uma imprecisa e lacunosa repartição de encargos públicos.
A previsão constitucional (art. 23, parágrafo único) para regulamentar por lei complementar o federalismo cooperativo jamais prosperou.
Quanto à progressividade no sistema tributário, a verdade é que não existe estudo consistente sobre a matéria no Brasil. Os trabalhos divulgados estão assentados em hipóteses frágeis e juízos de valor questionável.
Cada vez se fortalece a convicção de que a progressividade melhor se efetiva pelo lado do gasto público.
A despeito disso, há situações específicas de evidente regressividade no sistema tributário, como a extinta dedutibilidade da correção monetária do patrimônio líquido das empresas no âmbito do IRPJ. Por conta dessa regra, grandes empresas em circunstâncias de inflação elevada praticamente não recolhiam aquele imposto.
A eliminação dessa dedutibilidade, em 1995, abriu espaço para adoção de inúmeras medidas, como a redução das alíquotas nominais do IRPJ, a adoção dos juros remuneratórios do capital próprio, a isenção na distribuição de resultados, a ampliação do limiar do lucro presumido, a instituição do Simples para as pequenas e microempresas, etc. Como consequência dessa reforma, entre 1996 e 2002, o IRPJ, como proporção do PIB, cresceu, 50% e a arrecadação teve um aumento de 117% acima do IPCA. Portanto, funcionou, deu certo.