Na situação difícil que se desenhou em 2020, é preciso reconhecer que o governo obteve vitórias inesperadas. Conseguiu, de maneira surpreendente, eximir-se da responsabilidade pelas consequências devastadoras, em termos de número de casos e de óbitos, da progressão da pandemia em território nacional. Colheu os frutos do programa de transferência de renda decidido no âmbito do Congresso Nacional, na forma de elevação do percentual de aprovação junto aos eleitores. Finalmente, operou com sucesso a mudança radical de uma estratégia de confronto das instituições, que teria o golpe como único corolário possível, para o funcionamento novo, na forma de “governo parlamentar”, com apoio dos partidos classificads como “centrão”.
Ao fim do ano, contudo, dois contratempos relevantes para os projetos governamentais emergiram. Em primeiro lugar, a derrota de Trump nas eleições americanas, retirando de cena o único contraponto possível aos retrocessos procurados deliberadamente nas relações com a China e a União Europeia. Em segundo lugar, a derrota contundente da grande maioria dos candidatos que obtiveram o apoio presidencial explícito nas eleições municipais de novembro. Aparentemente, em muitos casos o apoio declarado do Presidente teria funcionado como “beijo da morte”, afundando candidaturas até promissoras até aquele momento.
Ambos os revezes acontecem às vésperas da passagem para um ano que promete elevar os problemas do país e do governo a outro patamar. No que respeita ao enfrentamento da pandemia, tudo indica que a incapacidade do governo federal para obter vacinas em quantidade suficiente e planejar sua aplicação ordenada no conjunto da população será desvelada. A situação que se avizinha é a de comparação cotidiana, completamente desfavorável para nós, com países que conseguirão vacinar a tempo sua população.
Na perspectiva econômica, por sua vez, a situação inspira cuidados. O fracasso em conter a pandemia impede uma retomada consistente. Por outro lado, não é viável manter o auxílio no montante atual e a comparação nesse caso acontecerá entre o cidadão de 2020 que recebia um tanto e o de 2021, que passará a receber uma fração desse montante.
Comparações desfavoráveis geralmente são fonte de insatisfação, com potencial para evoluir para rejeição e fúria no plano da política. Num quadro com essas características, índices de popularidade são os primeiros a desaparecer e, na sua ausência, o debate sobre o abreviamento do mandato presidencial pode tomar assento na agenda da política. À luz da experiência recente, esse é o cenário mais provável, num cenário de aprofundamento das diversas crises. No entanto, na perspectiva da experiência mais antiga, que anima setores relevantes do governo, a situação de tempestade poderia, paradoxalmente, reunificar os defensores da ordem a qualquer custo em torno do fortalecimento político do Presidente da República.