Em fevereiro de 2022, celebraremos redondos 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, e isso suscita diversas questões quanto ao desempenho e dispersão do nosso modernismo (e da nossa cultura moderna em geral) no contexto brasileiro, um século depois. Uma pergunta emerge, intrigante: por que o cinema, forma de arte então nascente e signo para o trator de linguagem e expressão da modernidade em diversos países, não foi contemplado pelos artistas do hoje mítico evento paulistano? Afinal, ainda em 1924, reformulando seu primeiro manifesto, Oswald de Andrade publicaria, no poema “Falação”, o que parece uma síntese das ambições que visionaria o cinema moderno brasileiro, décadas depois: “O Carnaval, O Sertão e a Favela, Pau-Brasil, Bárbaro e nosso”.
É verdade que nosso cinema, apesar de desprezado pela primeira intelligentsia modernista – ainda que seus recursos de montagem aparecessem na poesia de Oswald, Manuel Bandeira e Menotti Del Picchia – não deixou de absorver influência da própria estética do cinema de vanguarda internacional, como pode ser visto nos filmes mudos São Paulo Sinfonia da Metrópole (Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny, 1929) e Limite (Mário Peixoto, 1931), que dialogaram com o expressionismo, o impressionismo, o construtivismo, o cubismo e o dadaísmo. Essas vanguardas transitavam com forte confluência entre artes na Europa – e o cinema era peça central delas.
Porém, foi nas gerações seguintes de filmes, considerando o caráter errático de nossa produção, que o cinema brasileiro conseguiu “antropofagizar” (para usar um termo modernista) melhor os desdobramentos que nossa cultura literária e visual moderna demonstraria em sucessivas manifestações. Seguindo o verso de Oswald: o “Carnaval” das chanchadas, a “Favela ” no neorrealismo brasileiro de Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, o “Sertão ” no Cinema Novo, o “Bárbaro e nosso” no Cinema Marginal. Como veremos, a influência dos sucessivos modernistas na literatura, na pintura, na música e na arquitetura iria além de mero conteudismo: no Tropicalismo, no Concretismo, na Vanguarda Paulista – os grandes movimentos modernos do século 20 tiveram profunda interface com o cinema.
Alguns casos, porém, foram notórios e mais diretos. Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, era afilhado de Manuel Bandeira, e fez um curta sobre ele (O Poeta do Castelo, 1959); uma contida, mas expressiva adaptação de Drummond (O Padre e a Moça, 1966); e uma livre biografia de Oswald (O Homem do Pau-Brasil, 1981). Seu Macunaíma (1969), porém, anárquico, iconoclástico, alegórico, tudo ao mesmo tempo, não só trouxe o texto de Mário de Andrade aos anos de chumbo, como cimentou a passagem sem rédeas ao Cinema Marginal.
Outros autores de diferentes fases do modernismo brasileiro também foram adaptados à luz do pensar específico do cinema: Walter Lima Jr. trouxe o lirismo regionalista de José Lins do Rego (Menino de Engenho, 1965); Nelson Pereira dos Santos, a aridez editorial de Graciliano Ramos (Vidas Secas, 1963); Roberto Santos, o estupor diabólico de Guimarães Rosa (A Hora e a Vez da Augusto Matraga, 1971). Já nos anos 80, Suzana Amaral adaptou, em linguagem cinematográfica derivada da nouvelle vague, o simbolismo de protesto de Clarice Lispector (A Hora da Estrela, 1985).
E não foi só no campo das adaptações literárias que o modernismo prosperou no cinema brasileiro. Diálogos mais profundos, no ideário dos manifestos, na música, na pintura e na arquitetura modernas (aí já destacadas do pioneiro “ismo” dos anos 20), ocorreram no âmbito do Cinema Novo. Por exemplo, a alegoria das estruturas profundas do Brasil nos filmes de Glauber Rocha (que chegou a filmar e montar, numa mistura de Eisenstein com Paulinho da Viola, o enterro de um dos célebres pintores da Semana de 22, em Di Cavalcanti, 1977), ou nos conflitos da modernização automotiva em São Paulo S.A. (1965), de Luís Sérgio Person. A alegoria se tornaria vocabulário comum também no final dos anos 60, com filmes como Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. (1969), que radicaliza a mistura de gêneros, e dos anos 70, com Bye Bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), que pensa a nação como performance modernista.
Ainda que de maneira não evidente, o Cinema Marginal, com sua implosão dos ideários alegóricos do Cinema Novo, radicalizou o coloquialismo e as propostas de leitura de nação almejadas pelo modernismo, caminhando aí já para uma estética pós-moderna. Dali saíram Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Helena Ignez, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Ozualdo Candeias, entre tantos outros, que, cada um à sua maneira, propuseram se descolar do princípio unitário do modernismo e investir num solipsismo gutural. É daí que comparece, como descendentes, uma parte desafiadora da produção contemporânea, finalmente desalinhada das propostas de 22, em filmes como Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), Batguano (Tavinho Teixeira, 2014), Febre (Maya Da-Rin, 2020) e, é claro, o canibalesco Bacurau (Kléber Mendonça Filho, 2019).
Seria, no entanto, injusto não lembrar do trabalho que Júlio Bressane tem feito década após década no sentido de refletir, via linguagem cinematográfica, os destinos dos projetos modernista e moderno brasileiros, em filmes de constante reinvenção, muitos deles de baixo orçamento e produção semi-independente, sempre espiando nossa tradição, mas mirando um futuro para a linguagem de diversas artes, conforme se pensou em 1922. Não à toa, ele adaptou com radicalidade, em 1996, o primeiro romance de Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar, no filme Miramar. Parece testemunho daquilo que o sociólogo Paulo Prado escreveu no prefácio do primeiro livro de poesia de Oswald (Poesia Pau-Brasil), em 1925: “O manifesto que Oswald de Andrade publica encontrará nos que leem (essa ínfima minoria) escárnio, indignação e mais que tudo – incompreensão”. Porém, talvez, não tanto da parte do cinema.
Essa e outras discussões estão presentes no ciclo de debates “O modernismo no cinema brasileiro”, realizado de forma on-line , todas as quintas-feiras, quinzenalmente, até o aniversário da Semana de Arte Moderna, pela Fundação Astrojildo Pereira. Participação deste que escreve, do cineasta Vladimir Carvalho e de outros convidados.
Ciro Inácio Marcondes é doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), crítico de cinema e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de junho (32ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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