Processo político e institucional no Chile pode ser considerado como o mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã, em toda a história da América Latina, mas a refundação do Estado chileno pode ter complicações irreparáveis, avalia Alberto Aggio
Sob imensas expectativas, instalou-se, no início de julho, a “Convención Constituyente” que deverá elaborar a nova Constituição do Chile no prazo de nove meses, prorrogáveis por mais três, para, em seguida, ser levada a plebiscito. São expectativas compartilhadas dentro e fora do Chile, mas há sérios riscos de uma derrapagem que pode causar complicações irreparáveis.
Nascida de protestos cívicos, cujo ápice foi a manifestação multitudinária de 18 de outubro de 2019, a Constituinte ganhou vida mediante um acordo firmado entre as principais forças políticas do país que reconheceram a legitimidade do que se passava nas ruas. Estabeleceu-se a realização de um plebiscito (realizado em 25 de outubro de 2020) que sancionou, tanto a vontade majoritária por uma nova Constituição, como a eleição específica e paritária de 155 constituintes, dentre eles 17 representantes dos “povos originários”, o que se concretizou nas eleições de 16 de maio deste ano. Estabeleceu-se, desde novembro de 2019, que 2/3 seria o critério para aprovação de todas as matérias constitucionais.
Talvez não se conheça processo político e institucional mais democrático e participativo de reconhecimento da soberania cidadã, em toda a história da América Latina. Com a aprovação de 80% no plebiscito, feriu-se de morte a ordem institucional da Constituição de 1980, imposta pela ditadura de Augusto Pinochet e, ao mesmo tempo, abriu-se a senda da refundação do Estado chileno, expressa na instalação da Constituinte.
Está em curso, portanto, a ultrapassagem da Constituição de 1980 que amordaçou a sociedade chilena e, também, a estratégia de “reformas” desta mesma Constituição implementada pelos diversos governos da Concertación, desde 1990, que, embora tenha feito avançar a democratização, não conseguiu adequar-se aos novos tempos, ampliando direitos ou reelaborando aqueles que foram perdidos, desde o golpe militar de 1973.
Trata-se efetivamente de uma “experiência disruptiva”, mas não equivalente a uma “revolução”, em seu sentido convencional; nem mesmo equiparável à “Primavera Árabe”, iniciada na segunda década do século. O processo em curso no Chile visa, essencialmente, refundar o Estado, mas está institucionalizado, como ficou claro na instauração da Convención.
Os termos da refundação aparecem claramente no discurso de Elisa Loncón[1], eleita como Presidente da Assembleia. Ela pediu um “esforço de unidade” para “transformar” o Chile, “ampliando a democracia”, tornando-o socialmente mais igualitário, sexualmente mais livre, economicamente mais justo, ecologicamente sustentável, e, por fim, um país “plurinacional e intercultural”. Um programa máximo, pensado a partir dos novos direitos e novas subjetividades que terá de interagir com dimensões externas à Constituinte, ou seja, com um governo impopular e um Congresso a ser renovado junto com a Presidência da República nas eleições do final do ano.
Apelando para a soberania plena da Constituinte e levando em conta suas primeiras iniciativas, está claro que os “maximalistas” tentarão superar a imposição dos 2/3, violando o acordo originário. Como afirma o sociólogo Patricio Navia, parece claro que a maioria dos constituintes “está decidida a se livrar da camisa de força representada pelo acordo que sancionou o início do processo”[2]. Com a legitimidade lida em chave exaltada – como uma “tomada de poder” – e o enfraquecimento das demais instituições políticas, a direção da Constituinte convocou, inclusive, um debate sobre a libertação dos detidos nas manifestações de 2019, atuando fora de suas atribuições.
Serão complexas também as relações da Constituinte com os candidatos à Presidência. Por um lado, as pautas da Constituinte podem ser “presidencializadas”; por outro, em campanha, os candidatos poderão se sentir condicionados aos encaminhamentos político-ideológicos da Constituinte; e se, por fim, o vencedor não for propriamente ao gosto da direção da Assembleia, pode-se supor que haverá alguma tentativa de diminuir poderes ao Executivo. Num contexto mais polarizado, poderá haver, inclusive, a tentação de se convocar novas eleições presidenciais.
Em entrevista recente, o jornalista e escritor José Rodriguez Elizondo vê tudo isso com apreensão e adverte: “Quando uma sociedade começa a se odiar, deixa de ser viável” [3]. Para ele, o concurso do “centro político” poderia ser bastante saudável nesse processo legítimo de refundação do Estado chileno.
[1] Elena Loncon tem 58 anos, foi eleita como representante mapuche, é formada pela Universidade de Santiago (USACH) e fez doutorado em Humanidades e Linguística na Universidade de Leiden, na Holanda.
[2] Patricio Navia, “La poderosa Convención Constitucional” In Il Libero, cf. https://ellibero.cl/opinion/patricio-navia-la-poderosa-convencion-constitucional/ .
*Alberto Aggio é historiador, Professor Titular da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e responsável pelo Blog Horizontes Democráticos.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto (34ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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