Extração ilegal de madeira é um dos motores da destruição ambiental na região amazônica, avalia o delegado da Polícia Federal
Por Caetano Araújo, Basileu Rodrigues e André Amado
Rastreabilidade. Esta é, hoje, a palavra-chave para o combate às irregularidades envolvendo a extração e venda ilegal de ouro e madeira da floresta amazônica, por exemplo, avalia o delegado da Polícia Federal (PF) Alexandre Saraiva, ex-superintendente do órgão no Amazonas, entrevistado especial desta 36ª edição da Revista Política Democrática Online.
Através da metodologia de isótopos estáveis, base da tecnologia de rastreabilidade, seria possível diferenciar a madeira proveniente de cada região do país, por exemplo, informa. Saraiva foi exonerado do cargo de superintendente em abril passado, após enviar ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma notícia-crime contra o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles por obstrução de investigação, advocacia administrativa e organização criminosa.
Os supostos crimes de Ricardo Salles, de acordo com Saraiva, ocorreram após a Operação Handroanthus, da Polícia Federal, apreender 213 mil metros cúbicos de madeira ilegal na divisa entre Amazonas e Pará, no fim do ano passado, no valor de R$ 130 milhões. Foi a maior apreensão de madeira ilegal da história do país.
Saraiva alerta que a lei é completamente ignorada pelos madeireiros que atuam ilegalmente na região amazônica. “Tem traficante de drogas saindo do tráfico e indo para a madeira, tanto mais porque a pena do tráfico de drogas é de cinco a 15 anos, regime fechado”, alerta. “Aí ele olha a madeira, está dando um dinheiro danado, e a pena é cesta básica. Não precisa ter muita inteligência para mudar de ramo”, critica.
Um dos pioneiros das delegacias de crimes ambientais no país, o delegado da Polícia Federal comenta, na entrevista à Revista Política Democrática, os problemas enfrentados na região amazônica nas ações de combate ao garimpo ilegal, grilagem, extração ilegal de madeira e desmatamento, bem como aborda soluções que poderiam inibir a ação de quem comete tais crimes. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.
Revista Política Democrática Online (RPD): Você é um dos pioneiros das delegacias de combate aos crimes ambientais. Fala um pouco dessa sua experiência e como você aterrissou na Amazônia.
Alexandre Saraiva (AS): Quando entrei na Polícia Federal (2003), as delegacias já estavam sendo criadas ainda de uma forma incipiente, embrionária. De início, fui lotado na delegacia de Nova Iguaçu que não tinha uma área específica de meio ambiente, mas me distribuíram alguns inquéritos de meio ambiente, e eu intuitivamente me direcionei para essa área. A primeira operação chamada Euterpe que atingiu a corrupção no IBAMA do Rio de Janeiro. Revelou-se a maior operação contra a corrupção ambiental fora da Amazônia legal. Houve uma troca de informações muito positiva entre a Polícia Federal e o Ministério do Meio Ambiente. Naquela época era comum e nós confiávamos em quem estava sentado na cadeira de ministro. Hoje isso não é mais possível.
Em seguida, conduzi outra operação para combater desvio de recurso público no Cristo Redentor. A estimativa era a de que em torno de 95% da bilheteria eram embolsados pelos criminosos. Tivemos também a operação para combater o tráfico de animais silvestres no Estado, que gerava uma enormidade de recursos. Foi quando nos demos conta de quanto essa biopirataria era valiosa, do quanto o Estado brasileiro estava inerte, adormecido, anestesiado por práticas criminosas, e de como nossa legislação era leniente, impondo, no máximo, pena de pagamento de uma cesta básica. Só para dar um exemplo: prendemos um suíço que tentava sair do Brasil com um cinturão cheio de ovos de arara-azul. Cada ovo de arara-azul seria negociado a 30 mil euros na Europa, valia mais que ouro. Foram 102 presos em seis países. A operação foi considerada como modelo de combate ao crime organizado pela Interpol.
RPD: E sua passagem pela Amazônia. O que aconteceu por lá?
AS: Sempre quis fazer alguma coisa pela Amazônia. Fiquei 3 anos e meio em Roraima. Uma das primeiras operações foi contra o desmatamento, com uma nova abordagem investigativa, conseguimos reduzi-lo de 363% para 44%. Nossa estratégia foi: “Vamos atrapalhar o máximo possível a vida desses caras”. E nessa de tentar atrapalhar o máximo possível a gente acabou entendendo a dinâmica do desmatamento da Amazônia atual. Como todo morador do Sudeste, fui para lá com uma ideia pré-concebida de que é o agronegócio que destrói a Amazônia, a agropecuária, a agricultura. Não quero absolver de culpa essas atividades, mas motor econômico da destruição da Amazônia, atualmente, passa pela madeira, pela exploração ilegal da madeira.
RPD: E grilagem, não é?
AS: E grilagem. Vou chegar lá. Primeiro o cara chega, detona a madeira, a madeira paga o desmatamento que vai deixar a terra nua a ser grilada, mas a madeira dá muito dinheiro. Por que a madeira está dando muito dinheiro? Porque o mercado internacional era dominado pelos países do sudeste asiático. Diversos artigos de pesquisadores japoneses atestaram foi a madeira o motor econômico para a destruição das florestas no sudeste asiático, depois vieram a agricultura e o gado. Pode ter vindo até um shopping center, não importa, o motor econômico foi a madeira.
No Brasil tem uma particularidade com a grilagem. O sujeito grila, tem um esquema no Incra ou no órgão estadual, mas não vai plantar ali, vai usar a terra que ele documentou de forma fraudulenta como garantia em um banco público dizendo que ele vai plantar soja, plantar gado, plantar não sei mais o quê. Passado um tempo ele não plantou nada.
RPD: O pasto não é a primeira ocupação da área desmatada?
AS: É. Mas ele não vai plantar nada, vai botar meia dúzia de bois ali, o interesse dele é outro. O empréstimo que pegou teve como garantia a terra que nunca foi dele. Ele não paga e ele diz ao banco: “Deu chuva. Deu sol. Deu gafanhoto”. Na pior das hipóteses, ele perde uma terra que nunca lhe pertenceu. Na melhor das hipóteses, ele recebe o seguro do Proagro, que é o seguro mais fraudado da face da terra. Se os senhores pegarem a área desmatada da Amazônia, e eu olhei mais de mil imagens, depois de um intervalo de cinco anos do desmatamento, não tem nada ali. Se a gente pegar os números do IBGE, números oficiais, produção agropecuária na Amazônia Legal, ela em 10 anos tem o aumento, assim, de 2%, 5%, e o desmatamento, 90%.
É muito cômodo para os países europeus jogarem essa da soja ou do gado. Mas eu falei para os embaixadores europeus que foram levados lá em Manaus pelo vice-presidente: “Os senhores nunca acharam estranho que estão comprando na Europa ipê pelo o mesmo preço de eucalipto?” E mostrei os sites. Se a gente pega o regulamento europeu 995 de 2000, que trata dos critérios para importação de madeira tropical para a Europa, veremos que é extremamente leniente, frouxo, permissivo. O importador só tem que declarar a primeira vez de quem comprou e, depois, não precisa mais. Comparando com regulamento 1760 que trata da importação de carne bovina, a conversa é outra, são mais de 200 artigos, a palavra rotulagem está escrita 35 vezes, o boi tem de receber brinco no pasto. Se for para Europa, passaporte. Não sou contra se eles querem controlar isso. Só não entendo por que com as arvores é diferente.
RPD: É possível aplicar o mesmo rigor com relação à madeira?
AS: A matéria prima utilizada pelos madeireiros é de graça, porque não pegam nada. Eles grilam a terra pública. Energia elétrica, eles também não pegam, furtam. Mandei um ofício para a Amazonas Energia perguntando quantas unidades de consumo de energia elétrica de atividade madeireira têm? São 1913. E qual é a dívida dessas unidades? 20 milhões de reais. Mas há 69 liminares do Poder Judiciário proibindo a concessionária de cortar a energia dessas empresas. Fizemos um flagrante ano passado em uma madeireira em Presidente Figueiredo, furto de energia, o que é a regra geral, mas nesse caso eles ainda tiraram o transformador da rede e colocaram dentro da madeireira. Direitos trabalhistas? Não existe também. Não existe Estado de Direito. Não existe. A lei é completamente ignorada, e o Estado é cúmplice desses sujeitos. Como que alguém que queira produzir madeira dentro da legalidade vai conseguir competir em termos de preço com esse pessoal? É impossível. Não tem como.
RPD: As operações da Polícia Federal no combate ao desmatamento na Amazônia foram fundamentais para o próprio Ibama. Aconteceram num momento muito importante porque no final de 2002 houve o primeiro concurso de servidores no órgão e entrou uma quantidade proporcionalmente grande de fiscais novos. Mas eles estavam entrando em um ambiente muito viciado. A Operação Curupira, no Mato Grosso, e depois as tantas outras que se assemelham como as que o senhor conduziu no Rio de Janeiro, foi fundamental para afastar os novos fiscais desse ambiente viciado.
AS: …é outro Ibama
RPD: Além da Polícia Federal, havia a participação importante do Exército no provimento de logística para as operações, sem entrar na linha de frente. Agora, notamos uma diferença com a decretação da GLO (Garantia da Lei e da Ordem), quando passou a coordenar as ações de combate ao desmatamento na Amazônia, e não mais o Ibama.
AS: E foi um desastre. Os militares não sabem fazer isso. Por exemplo, pararam de destruir o maquinário de garimpeiro e de desmatador. É lógico que tem de ser destruído. Ninguém discute quando se destrói um laboratório de refino de cocaína no interior da Amazônia. Evidentemente que nem tudo que está ali no laboratório de refino é utilizado exclusivamente para o refino da cocaína, mas, de uma forma ou de outra, ele dá suporte para aquilo aconteça e deve ser destruído. Ninguém questiona isso. Agora, quando é madeireiro e ou garimpeiro, vem essa choradeira toda? Não entendo. Eu mando destruir. Na ordem de missão eu já escrevo isso. Se não é para destruir é melhor nem ir.
RPD: Por que hoje não se pode fazer isso?
AS: Porque o governo proibiu o Exército de fazer isso. Minha interpretação é baseada no precedente da Suprema Corte Norte Americana, ou seja, é a teoria dos poderes implícitos que foi aceita pelo Supremo Tribunal Federal. Quando a Constituição dá a missão, ela dá os meios para o cumprimento da missão. Se a missão constitucional é a defesa do meio ambiente ou a defesa das terras indígenas, implicitamente ela dá também os meios necessários para que isso será realizado. Ponto. Isso sempre foi meu argumento, e sempre foi muito bem aceito, não preciso de um decreto para me falar isso.
RPD: Como evoluiu essa situação sem poder destruir o maquinário para impedir o desmatamento?
AS: O que aconteceu foi o seguinte. O Ibama foi retirado do cenário operacional, retirado. A Polícia Federal foi questionada em vários documentos assinados por parlamentares, eu tenho todos guardados. Sofri uma pressão tremenda tanto agora, de um ano para cá, como na época do governo Temer.
RPD: Poderia especificar um pouco as datas marco desse processo? Quando começou isso? Parece que a coisa ia em um sentido, a partir de um certo momento começou um retrocesso. Quais foram as datas fundamentais desse retrocesso?
AS: Posso falar com uma certeza absoluta. Desde 2011, porque em 2011 participei diretamente do processo. Naquele ano nós fizemos uma operação em Roraima chamada Salmo 96:12. Ao invés de ficarmos indo a campo atrás do desmatador, começamos a olhar quem autorizou o desmatamento. Porque sem a autorização do desmatamento não dá para desmatar: “Mas o desmatamento é ilegal”. É ilegal, mas tem documento. Se confunde madeira legal com madeira documentada, que são coisas complemente diferentes. Vou dar um exemplo: imagina uma empresa, uma loja especializada em venda de veículos provenientes de furto e roubo. Para conseguir vender o veículo, ela precisa de um esquema no órgão estadual que emita um DUT (Documento Único de Transferência) e um CRV (Certificado de Registro de Veículos), senão ninguém compra. A madeira é a mesma coisa, o sujeito precisa do DOF, Documento de Origem Florestal, para colar nessa madeira senão ele não exporta, não circula.
RPD: Quem é responsável pela emissão do DOF?
AS: Com a Lei Complementar 140, aprovada pelo Congresso Nacional, passou a ser emitido pelos órgãos ambientais estaduais. Isso foi muito ruim, não que fosse perfeito com o Ibama, mas piorou muito quando foi para o Estado. Nos rincões da Amazônia, os servidores ficam sob uma pressão enorme, em que pese existirem verdadeiros heróis. O cara vai lá e caneta, diz que está tudo errado, duas páginas depois o parecer dele é ignorado e tchau e benção, sai a autorização. No Pará, é muito pior, não tem processo administrativo nenhum. Eles não fazem parte do sistema nacional de controle, que é o SISDOF.
O órgão estadual autoriza, mas tem que lançar a autorização no SISDOF. No Pará e Mato Grosso, não. É uma confusão, nem processo administrativo tem. E quando o processo administrativo não existe, os atos públicos deixam de ser transparentes, ninguém sabe quem autorizou o quê. Na minha opinião, deixa de ser uma república.
Essa última operação, que teve a presença do Ricardo Salles, foi vergonhosa. Na regularização fundiária de um assentamento de 1986, o Nelson que era o ocupante deu a terra para o João em permuta, mas só o João assina o documento com o Estado. É como se nós dois fôssemos permutar nossos carros, mas eu não assino, só o senhor que assina junto com o Estado. O Ricardo Salles recebeu os laudos, nós mandamos para ele. Antes daquela confusão toda, ele sabia o que estava acontecendo, mas ele, arrogante, querendo defender os caras, foi lá, deu uma entrevista para o Estado de São Paulo dizendo que estava tudo certo e que o maluco era eu. Citou o meu nome. Dei uma entrevista à Folha de São Paulo e bati no joelho. Falei que não ia passar a boiada.
Na quarta-feira seguinte, ele voltou lá e deu o prazo de uma semana para a Polícia Federal para liberar tudo. Quando eu olhei aquela maçaroca de papel que ele tinha me mandado, percebi que havia ultrapassado uma linha vermelha, que, na minha opinião, passou a fazer parte do crime. Quando comecei a escrever a notícia crime para o Supremo Tribunal Federal contra ele, sabia que provavelmente seria exonerado, que não seria indicado para nada. Seria normal, e até esperado que depois de dez anos como superintendente na região norte me fosse oferecida uma adidância no exterior, este é o sonho de muitos delegados. Para mim não, eu não faço questão. Também não reclamaria de ir. Se eu não tivesse assinado aquilo, eu provavelmente não teria sido exonerado e, se fosse, talvez fosse indicado para ser adido na Europa, mas não me vendo. E mandei para o STF. Graças a Deus caiu na mão da ministra Carmem Lúcia, que deu andamento. No dia seguinte, fui comunicado pela imprensa que eu estava sendo exonerado. Hoje estou lotado na Delegacia de Volta Redonda.
RPD: E em que pé está o processo?
AS: Está no TRF1, que vai decidir qual o juízo de 1ª instância competente.
RPD: Você acha que a primeira instância vai ser ativa?
AS: Eu acho. Eu acho.
RPD: É, já foi ativa naquele primeiro processo que ele tinha em São Paulo pelo plano de manejo na região do Alto Tietê.
AS: Foi. Aquilo ali é muito interessante.
RPD: Mas depois ele conseguiu se livrar no tribunal, né?
AS: O tribunal, temos esse problema, não é? Dessas indicações pelo quinto constitucional. Isso é uma grande desgraça dos tribunais. Faço as devidas reservas àqueles que são bons magistrados e que foram indicados pelo “quinto”, mas a regra geral é muito ruim. Se a gente pega o que ele fez em São Paulo, li a sentença, mutatis mutandis, é a mesma coisa que ele queria fazer na Amazônia, são aqueles ajustes factuais mudando aqui, puxando a área de preservação… Dá para contar umas 32 ilegalidades.
RPD: E essa madeira está onde?
AS: Está lá no Rio Arapiuns, no meio do nada. O TRF não decidiu. Ainda tá parado. Tudo parado, mas pelo menos a gente interrompeu, não é?
RPD: A gente sabe que outro crime muito complicado na Amazônia, além da extração de madeira é o garimpo ilegal, não é? O senhor teve também uma atuação nessa área.
AS:. Sim, atuei nessa outra desgraça também. E digo, é possível resolver. Em 2012 quando eu era superintendente em Roraima, conduzi uma operação, chamada Xawara. Na terra Yanomami, você só entra de duas formas – pelo rio ou pelo ar, nos aviõezinhos. Suspendemos o brevê de todos os pilotos, apreendemos todos os aviões e passamos uma corrente no Rio Uraricoera. E puxamos o fio financeiro e chegamos a uma corretora em São Paulo. Ou seja, é possível. Mas precisa ter vontade política.
Instrumental tecnológico necessário, suficiente, nós temos. Expertise profissional, temos também. Não precisamos de 1 bilhão de dólares, como dizia o ex-ministro. É só pegar os dois Estados que mais desmatam, Mato Grosso e Pará, e fazer uma auditoria nos processos administrativos. Bota ali dez fiscais do Ibama, cinco peritos, isso vai sair por 100 mil reais, e acaba. Sabe por quê? Já peguei conversa de madeireiro, posso falar porque o sigilo foi levantado, que falava assim: “meu problema não é madeira, madeira eu tenho aqui de graça. Meu problema é DOF”. Entendeu? Ele precisa do DOF para colar na madeira, senão a madeira vai ficar lá parada.
RPD: Era isso que o Salles colava na madeira quando foi lá na Amazônia?
AS: Não. Ele estava ali pegando o plano de manejo. Tinha umas 70 mil outras toras, mas ele pegou duas com o código de barra, que tem de coincidir com o toco de onde foi retirado. Ele pegou duas de 70 mil e disse: “está tudo certo, tem que liberar a madeira”. Isso é uma brincadeira. Podia mostrar para ele três mil erradas, mas ele não me perguntou. Aliás, entreguei para ele o laudo de mais de 100 páginas. Ele não tem como dizer que não sabia.
RPD: Em uma série de seminários, organizados por institutos e fundações ligados a partidos políticos, sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável, um político da Amazônia insistiu em dizer não é ruim explorar os recursos da Amazônia. O povo caboclo, segundo ele, sabe fazer isso de maneira espontaneamente sustentável. Não é isso que degrada a Amazônia. O que degrada a Amazônia é não ter fiscalização das atividades consideras ilícitas. Concorda com essa avaliação?
AS: Um dos elementos principais do fenômeno criminoso de acordo com a criminologia é a ausência de guardião, e o guardião não precisa ser um policial, não precisa ser um guarda, pode ser um satélite, pode ser uma câmera, pode ser um sistema, pode ser o blockchain. Quando a gente consegue criar uma cadeia de custódia auditável, confiável, é possível que se tenha governança. O problema é que ninguém quer criar essa cadeia porque tem muitos interesses por trás disso.
Por exemplo, blockchain é uma tecnologia já dominada e poderia resolver o problema fundiário. Não precisamos de cartório. Poderia resolver o problema da madeira, poderia resolver N problemas, mas não existe interesse político na implementação dessas tecnologias. Vivemos um tempo em que existia interesse e vontade política de grande parte dos setores governamentais, mas não dispúnhamos dessas tecnologias. Hoje é o contrário, temos disponíveis as tecnologias, os técnicos, mas não existe vontade política.
RPD: Passa muito dinheiro por essas atividades?
AS: Sim, muito. Tem traficante de drogas saindo do tráfico e indo para a madeira, tanto mais porque a pena do tráfico de drogas é de cinco a quinze anos, regime fechado. Aí ele olha a madeira, está dando um dinheiro danado, e a pena é cesta básica. Não precisa ter muita inteligência para mudar de ramo.
RPD: E qual é a saída?
AS: A saída é ciência, é tecnologia, é vontade política. O Brasil precisa investir em ciência e tecnologia de forma séria. No ano passado, dei uma olhada na relação de bolsas do CNPQ e de outros órgãos. Menos de 5% se destinavam a pesquisadores que estavam na Amazônia. E temos excelentes pesquisadores na Amazônia. O INPA – Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia – tem um pessoal sensacional, de altíssimo nível científico, mas não recebe recursos. Na Universidade Federal do Amazonas e no Programa de Ciências Ambientais e Sustentabilidade, também tem gente ótima, mas não chegam recursos para as pesquisas nem equipamento. As pesquisas da Amazônia são feitas no Sudeste, por pessoas que não conhecem a realidade de lá.
Quando fui para a Amazônia, e fiquei lá 10 anos, percebi que precisamos é investir em ciência e tecnologia e precisamos gerar riqueza. Quer ver um exemplo? A BR 319, causa desmatamento ou será que a ausência do Estado a causa o desmatamento? É o caso de dizer a uma amazonense, que mora no maior estado do país, que ele não pode ter estrada? O cara não vai passar para o nosso lado da proteção ambiental, vai virar inimigo. O custo de vida em Manaus é alto, e uma das razões é a dificuldade de transporte. A gente não gera atividade econômica, a gente não consegue escoar coisas que poderiam ser produzidas na floresta. Agora, alguém pisou na bola, cometeu crime, o Estado tem que ir lá, resposta firme.
Hoje temos um sistema de satélites chamado Planet que fotografa a superfície terrestre todos os dias. Temos imagens do desmatamento de ontem. Começou a desmatar? Desloca uma equipe para lá e acaba com o desmatamento no nascedouro. Bastam 50 homens e dois, três helicópteros. Vou alcançar todos os locais? Claro que não, mas eu vou utilizar a mesma lógica da Lei Seca. Qual é a probabilidade de alguém ser parado na Lei Seca? Nunca fiz o cálculo, mas deve ser 0,001. Mas esse risco é suficiente para que 80% das pessoas parem de beber enquanto dirigirem. Essa é a lógica que precisamos implementar. E isso é caro? Dois helicópteros, 50 homens? Mas por que não se faz?
RPD: Por quê?
AS: Falta de vontade política, falta de prioridade. A Polícia Federal não dá prioridade para meio ambiente. Vende esse peixe todo, mas não dá prioridade. Sou testemunha disso. Bota dois, três agentes nas delegacias de meio ambiente do Norte e nada mais. Para conseguir alguma coisa para meio ambiente é uma luta. Agora, todo mundo quer capitalizar quando dá certo.
RPD: Além das ferramentas de comando e controle da fiscalização, o ordenamento territorial é necessário? Pegando o exemplo da BR-163, que também era muito polêmica e sofria uma oposição quase que unânime de todo o setor socioambiental. Foi dada a licença ambiental, mas, em contrapartida, se exigiu um programa muito forte de ordenamento territorial das margens.
AS: Exato, exato. Este é ponto.
RPD: De uns dez anos para cá, ou menos, passou a aparecer projetos de lei para reduzir as unidades de conservação. Reduzir não só tamanho, mas também a categoria. O que era Parque Nacional vira Reserva de Desenvolvimento Sustentável.
AS: Um desastre. Isso acontece inclusive na Mata Atlântica, o que é um absurdo. Estamos em um momento horroroso. O que a gente pode fazer hoje – e o que eu fiquei tentando fazer, me equilibrando no fio da navalha para continuar sentado na cadeira de superintendente – é uma contenção de danos. Mas foi um aprendizado muito bom, mas espero que, quando superarmos esse cenário terrível, haverá espaço para implementação e aumento dessas tecnologias. Por exemplo, em relação à madeira.
Acho que a palavra-chave hoje para meio ambiente é rastreabilidade. Precisamos de uma rastreabilidade confiável para o ouro e para a madeira. Rastreabilidade científica. Como que seria a rastreabilidade científica? Através da metodologia de isótopos estáveis, que é uma tecnologia que permite diferenciar a madeira proveniente de cada região. Por exemplo, a água que cai no Rio de Janeiro é diferente da água que cai em Manaus. O átomo de oxigênio tem mais ou menos nêutrons, e esse equipamento é capaz de pesar isso. Compramos esse equipamento em Manaus para fazer a análise do hidrogênio, oxigênio, enxofre, nitrogênio e carbono. Para se ter uma ideia, os Estados Unidos já fazem isso há algum tempo com cocaína. Eles têm a assinatura isotópica das plantações de coca e sabem, quando apreende lá, de onde saiu com uma certeza geográfica bem relevante.
Começamos a fazer isso para respondermos a duas perguntas. Primeiro e mais importante: essa madeira não saiu de onde você está dizendo que saiu. Logo, é ilegal. Mais à frente, com o aumento do nosso banco de dados e dos parâmetros, vamos responder a segunda pergunta: essa madeira saiu do ponto Y. Para dar um exemplo do potencial disso, foi encontrado o corpo de uma mulher nos Estados Unidos. Estava só o esqueleto, mas ela tinha o cabelo comprido e queriam identificar. Cortaram o cabelo em vários pedacinhos e foram analisando os isótopos de água. Foram desenhando o caminho. Passou pelo Texas, Nova York e chegaram na cidade natal dela. É uma tecnologia revolucionária que vai agregar valor à nossa madeira. Vamos ter uma rastreabilidade científica, verdadeira.
Dizem que os índios vendiam madeira, trocavam por quinquilharia e faziam um péssimo negócio. Não sei se faziam um péssimo negócio dentro daquela circunstância. Mas hoje estamos fazendo um péssimo negócio porque a gente está vendendo madeira nobre para os Estados Unidos a preço de compensado, a preço de pinos. O Ipê leva 400 anos para se formar, eucalipto, cinco. Mas por que isso acontece? Acontece porque nossa madeira sofre um processamento primário e vai para a Europa como insumo para a produção europeia. Gera emprego na Europa. Ao passo que os nossos produtos agropecuários entram como concorrência. É muito cômodo para a Europa criticar a soja e o gado. Não digo que estão errados. A soja e o gado têm uma conta alta também. Mas por que não falam nada a madeira? Porque não interessa.
Saiba mais sobre o entrevistado
Alexandre Saraiva é Delegado da Polícia Federal. Ex-superintendente dos estados do Amazonas, Roraima e Maranhão. Doutor em Ciências Ambientais e Sustentabilidade da Amazônia (UFAM). Professor da Academia Nacional da Polícia Federal na disciplina Crimes Ambientais.
Saiba mais sobre os entrevistadores
Caetano Araújo é graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e Consultor Legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
Bazileu Margarido é engenheiro de produção e mestre em economia. Foi presidente do Ibama (2007-2008), secretário de Fazenda de São Carlos-SP (2001-2002), chefe de gabinete da ministra de meio ambiente Marina Silva de 2003 a 2007 e atualmente é assessor econômico da liderança na Rede no Senado.
André Amado
É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.