Bolsonaro aposta na legalização de pedaladas fiscais com a PEC 23, que traz mudanças sobre a forma de pagamento de precatórios
O orçamento federal será atingido em cheio por um meteoro na forma de precatórios, e um míssil precisa destruí-lo antes do vultoso impacto fiscal. Foi dessa forma que o Ministério da Economia anunciou um passivo de R$ 90 bilhões em 2022, valor bem superior aos R$ 55,0 bilhões do ano corrente. Ato contínuo, o Governo apresentou solução heterodoxa para destruir o tal meteoro: uma Proposta de Emenda Constitucional – a PEC 23 – para parcelar pagamentos de precatórios acima de determinado valor, criando modalidade de ajuste fiscal do tipo “devo, não nego, pago quando puder”. Análise menos ligeira das entranhas da proposta revela negligências e boa dose de irresponsabilidade fiscal por parte das lideranças do Poder executivo, que parecem apostar na legalização de pedaladas fiscais para enfrentar as eleições no ano que vem.
Para começar, é importante reconhecer o tamanho do meteoro anunciado pela equipe econômica. O Poder Executivo conta com R$ 95 bilhões para manter programas governamentais – as chamadas despesas discricionárias. Isto quer dizer que a conta de precatórios a ser paga pelo Governo equivale a um novo orçamento discricionário. Para quem não sabe, despesas discricionárias são aquelas que podem ser cortadas no curto prazo, diferentemente daquelas ditas obrigatórias (previdência social e salários de funcionários públicos, por exemplo). E precatórios nada mais são do que títulos emitidos pelo Governo para atestar a obrigação de se pagar uma quantia de valores a pessoas, ou empresas, que ganharam na justiça o direito de receber do poder público um quinhão de recursos: é uma dívida do Estado.
Sabe-se também que desde 2016 vigora na administração pública federal regra fiscal que impede o crescimento das despesas públicas a taxas superiores à da inflação. Tal regra é conhecida como Teto de gastos. Matematicamente, é fácil demonstrar que o Governo não conseguirá quitar as dívidas com precatórios sem comprometer o funcionamento da máquina pública. Isto porque não há espaço fiscal para acomodar tantas despesas no mesmo orçamento.
Diante desse dilema – pagar precatórios ou manter em operação a máquina pública -, o Governo encaminhou para o Congresso a PEC 23 com objetivo de parcelar o pagamento dos precatórios devidos. A estratégia é clara: postergar o pagamento de despesas obrigatórias para não efetuar cortes no orçamento discricionário em magnitudes que paralisariam a máquina pública. Pode-se dizer que tal medida envolve negligências e irresponsabilidade fiscal.
Negligência por que não fica claro nessa barafunda o motivo pela qual os relatórios oficiais do Governo não identificaram no radar a chegada deste meteoro na forma de precatórios. O anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), por exemplo, não traz análises prévias sobre o crescimento sideral das despesas com precatórios e seus impactos no financiamento das políticas públicas. É impensável imaginar esse tipo de negligência em uma empresa privada de grande porte; porém, é ainda mais espantoso o Ministro da Economia – acostumado a lidar com riscos no mercado financeiro – não ter farejado o aerólito fiscal a tempo. Ou se o fez, não deu a devida importância à transparência de eventos que podem afetar o equilíbrio das contas públicas.
A essa negligência soma-se também boa dose de irresponsabilidade fiscal. O parcelamento de precatórios se resume a uma medida que esconde a situação real das contas públicas, na medida em que posterga o pagamento de despesas obrigatórias. Esse tipo de prática lembra as pedaladas fiscais praticadas nas eleições de 2014: atos ilegais que serviram para gerar resultados fiscais fictícios. Se aprovada a PEC 23 do jeito que foi apresentada pelo Governo, manobras fiscais estariam sendo constitucionalizadas, sinalizando que o Governo federal não honra as dívidas com precatórios, que nada mais são do que obrigações financeiras decorrentes de sentenças judiciais.
De todo modo, o Poder judiciário vem sinalizando caminhos alternativos ao propor teto para pagamento de precatórios – medida similar à proposta do Poder Executivo, mas que dispensaria a necessidade de PEC. No entanto, a participação do Congresso Nacional será fundamental para trazer segurança jurídica. Uma solução poderia ser desenhada no sentido de excluir do Teto de gastos o excesso de gastos com precatórios, fortalecendo-se a governança em torno da gestão fiscal e sentenças judiciais. O parcelamento deve ser evitado a todo custo, pois não se trata de um meteoro no país das pedaladas.
*Leonardo Ribeiro é analista do Senado Federal e especialista em contas públicas. Foi pesquisador visitante da Victoria University, Melbourne, Austrália.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de setembro (35ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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