Cleomar Almeida, coordenador de Produções da FAP
O ronco no estômago ecoa como grito ensurdecedor na barriga de dezenas de catadores de lixo e outras pessoas que ficaram desempregadas em razão da pandemia da Covid-19. Verduras e frutas podres, pães industrializados vencidos e restos de comida de restaurante vão direto para a boca, numa guerra cruel contra a fome.
Mulheres e homens. Crianças, jovens e adultos. Todos se aglomeram em barracas nos canteiros de vias ou debaixo de árvores em áreas a menos de 1 quilômetro do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional, em Brasília. São pessoas que vivem das sobras de comida para enganar a fome e ficar cara a cara com o risco de intoxicação alimentar.
A idosa Maria Amélia da Conceição de Fátima, de 72 anos, e sua família, vivem entre os catadores de lixo. “Aqui, a gente passa muito aperto e até fome”, disse ela, em entrevista à Revista Política Democrática on-line. Do outro lado, no mesmo momento, uma criança comeu, com café, um pedaço de queijo, achado pela mãe no lixo.
A fome, no Brasil e no mundo, pode matar 11 pessoas a cada minuto, até o final deste ano, no planeta, caso nada seja feito, de acordo com relatório da organização internacional OXFAM, divulgado no dia 9 deste mês. O Brasil está entre os focos emergentes da fome, ao lado da Índia e da África do Sul.
Essa taxa de mortalidade é maior que a da Covid-19, que é de sete pessoas por minuto. As principais causas do problema são os conflitos armados, os impactos da pandemia e a crise climática, segundo a organização internacional. Ela reúne mais de 3 mil parceiros, que atuam em mais de 90 países na busca de soluções para problemas da pobreza, desigualdade e injustiça.
As pessoas no Brasil não foram poupadas do aumento da fome que atinge o mundo. Desde o início da pandemia, as mortes por Covid-19, no país, ficaram em terceiro lugar no mundo, enquanto o percentual de brasileiros que vivem em extrema pobreza quase triplicou – de 4,5% para 12,8%, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV). O governo federal classifica essa situação, no caso de a renda per capita ser de até R$ 89,00 mensais.
Insegurança alimentar
No final de 2020, mais da metade da população – 116 milhões de pessoas – enfrentava algum nível de insegurança alimentar, das quais quase 20 milhões passavam fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN). Isso marca uma tendência ascendente em relação aos anos anteriores.
“Quem quer que tenha sido o pai de uma doença, a mãe foi uma dieta deficiente”, disse à BBC o médico Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN).
A fome não afetou a todos da mesma forma. Os grupos desfavorecidos, incluindo negros, mulheres, pessoas que vivem em áreas rurais e indígenas, foram os mais atingidos no ano passado. No final de 2020, 11% das famílias chefiadas por mulheres conviviam com a fome, enquanto mais de 10% das famílias negras enfrentavam o problema, em comparação com mais de 7% das famílias brancas.
Além disso, 12% das famílias rurais passavam fome, em comparação com mais de 8% das famílias urbanas, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A família da classe média brasileira também foi afetada, já que o percentual de pessoas que vivem em algum nível de insegurança alimentar quase dobrou, passando de mais de 20%, em 2018, para quase 35%, no final de 2020.
Colapso
A pandemia resultou em colapso social e econômico, aprofundando a crise da fome. Medidas para conter a disseminação do vírus forçaram o fechamento de empresas, deixando desempregados mais da metade dos brasileiros em idade produtiva, além de quase 15 milhões de pessoas sem emprego, até o final do primeiro trimestre de 2021. Pequenas e médias empresas quebraram, representando 40% de todas as que fecharam até julho de 2020.
“O Executivo e o Legislativo são os responsáveis por discutir o orçamento do Estado para que o Judiciário autorize. Portanto, a fome não está sendo vista como prioridade”. A afirmação é do doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e representante do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (COMUSAN), José Raimundo Sousa Ribeiro Junior.
O especialista ressaltou ao Observatório do Terceiro Setor que o agravamento da fome, no Brasil, faz parte de um projeto político construído desde o início do mandato do atual presidente. Em fevereiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assinou o desmonte de uma das principais políticas de segurança alimentar, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).
“Com a pandemia, o governo federal deveria ter garantido que os alimentos não aumentassem, por meio de um estoque básico de alimentos, assim, a especulação dos preços de alimentos seria evitada”, disse o especialista.
É bem perto do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional que a idosa Maria Amélia, citada no início desta reportagem, segue na intensa guerra contra a fome, na esperança de que isso tudo vai passar. “A gente só precisa acreditar em Deus, meu filho. É a nossa única saída, porque a batalha é diária e ainda dou graças por estar viva porque tem um bocado de gente que morreu nesse Brasilzão”.
Alimentação impacta na reação do corpo contra a Covid-19
Professor emérito da Universidade da Pensilvânia (EUA), o médico Arnold R. Eiser, diz que a alimentação adequada talvez seja o fator mais importante em situações de reação desmedida do sistema imunológico contra invasores como a Covid-19, que acaba prejudicando o próprio corpo e, em alguns casos, leva até a morte.
Em artigo publicado no Journal of Alternative and Complementary Medicine, Eiser aborda características anti-inflamatórias das dietas japonesa e mediterrânea – ricas em ômega 3, verduras, legumes e cereais integrais, por exemplo – em comparação ao perfil pró-inflamatório da dieta ocidental, que é rica em carne vermelha, laticínios e açúcar, entre outros.
Eles estão ligados a reações inflamatórias do corpo e também estão entre os fatores associados ao surgimento de doenças cardiovasculares e obesidade, por exemplo. O pesquisador sugere mais pesquisas sobre o papel anti-inflamatório e preventivo da alimentação na pandemia.
“A profilaxia da supressão de citocinas por meio de mudanças na dieta pode ser benéfica na redução da letalidade em uma pandemia como a da Covid-19”, afirma ele. “Mudanças dietéticas em direção a uma dieta anti-inflamatória também têm benefícios adicionais à saúde, incluindo redução da morbidade e mortalidade cardiovascular, redução da prevalência de demência e efeitos antidiabéticos, para que a saúde pública poderia se beneficiar mais amplamente do que apenas na pandemia de Covid-19.”
Por outro lado, um grupo de dezenas de pesquisadores europeus sugere outras hipóteses, como a relação entre alimentação e os níveis de ACE2, enzima usada como porta de entrada pelo coronavírus para invadir as células humanas. Nesse caso, alimentos ricos em gordura saturada (como carne vermelha e laticínios) podem deixar algumas pessoas mais vulneráveis à doença. Na direção oposta, alimentos com potencial antioxidante podem ser benéficos.
Para a especialista em saúde pública nutricional Amanda Avery, professora da Universidade de Nottingham (Reino Unido), é preciso também considerar a relação entre alimentação e os conjuntos de micro-organismos (microbiota ou flora) presentes no intestino e nos pulmões.
Alimentos fermentados e probióticos, segundo ela, têm potencial para ajudar o organismo a prevenir infecções como a Covid-19. No intestino, por exemplo, vivem bactérias que se nutrem do que comemos e assim se proliferam e produzem mais nutrientes.
Saiba mais sobre o autor
Saiba mais sobre o autor
Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.