Por Caetano Araujo, George Gurgel, Arlindo Fernandes de Oliveira e André Amado
A condução sofrível do Brasil no combate à pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, além do desprezo pelas advertências dos médicos sanitaristas nacionais e internacionais, agravou, ainda mais, a fragilidade institucional do Poder Executivo, marcado pelo despreparo político, técnico e emocional do seu condutor, o Presidente da República; avalia Eliana Calmon, entrevistada especial desta 33ª edição da Revista Política Democrática On-line.
Jurista e magistrada, brasileira, aposentada, primeira mulher a compor o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no qual ocupou o cargo de ministra no período de 1999 a 2013, Eliana Calmon também comenta o cumprimento do papel institucional do Supremo Tribunal Federal (STF), no momento atual do país, “como protagonista maior dentre os Poderes, ora dando respostas políticas, ora decidindo as relações entre indivíduos, agindo como mediador”.
Para ela, o problema está “no equilíbrio das respostas políticas que têm ampla repercussão na vida cotidiana dos cidadãos, a exigir coerência entre o discurso político e as respostas dirigidas ao povo”, avalia. “A divergência entre as duas falas fragiliza o papel do Poder que dá a última palavra”, completa.
Atuando atualmente como advogada na capital federal, Eliana Calmon também foi corregedora-geral da justiça e diretora-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo (ENFAM). Na entrevista à Revista Política Democrática On-line, ela critica o desmanche dos órgãos de controle pelo governo federal, como a Receita Federal (RF), o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), além do aparelhamento da Polícia Federal (PF) e da Agência Brasileira de Investigação (ABIN), para servir a interesses do presidente Jair Bolsonaro, e não ao Estado.
O Legislativo, por sua vez, tem contribuído com o governo Bolsonaro ao promover “o recorte de diversos e importantes diplomas legais, com o afã de promover o desmanche dos mais severos instrumentos de combate à corrupção, tais como a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei da Ficha Limpa e a Lei de Acesso às Informações”, avalia.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista da ex-ministra Eliana Calmon à Revista Política Democrática On-line.
Revista Política Democrática On-line (RPD): Que contribuição o Supremo Tribunal Federal poderá fazer à consolidação da democracia brasileira, a despeito da interpelação frequente de redes sociais?
Eliana Calmon (EC): O Supremo Tribunal Federal, como um dos Poderes da República, é um dos pilares da democracia, tendo como missão precípua fiscalizar e proteger a Constituição Federativa do Brasil a mais importante lei do país. É o equilíbrio das forças políticas na medida em que os princípios fundamentais das instituições nacionais estão ali expressos. Aliado a essa função política é também o Supremo, no modelo traçado pelo Legislador Constitucional de 88, seguindo a tradição das anteriores Cartas, a cúpula do Poder Judiciário. Assim, pode-se dizer que cabe ao Supremo Tribunal Federal sustentar a democracia politicamente, como guardião constitucional e como fiscal da ordem jurídica. No momento em que as instituições estão fragilizadas como no presente, é relevantíssimo o papel do Supremo, chamado como guardião e fiscal a dar a última palavra, quando os demais Poderes faltam ou falham na sua missão institucional. Daí o apelo constante nas redes sociais, na tentativa de termos uma Corte Suprema confiável, capaz de colocar dentro dos parâmetros legais o processo democrático desempenhado pelas instituições.
RPD: O país passa por uma conjuntura, no mínimo, complicada. E nesse contexto, a democracia brasileira corre algum risco? E, em caso afirmativo, o Supremo Tribunal Federal tem correspondido às expetativas de cumprir com seu papel institucional?
EC: Atravessamos um dos mais difíceis momentos da vida política. O país evoluiu consideravelmente como nação democrática com a Constituição Federal de 88 e, nos últimos anos, principalmente nos últimos cinco, o viés participativo que eclodiu no mundo inteiro também chegou ao Brasil, não sendo poucas as reivindicações por novos direitos, inclusive pelo direito de participação social no governo. Essas reivindicações inquietam os governantes, exaltam o povo e, nesse confronto, buscam, ambos, no Poder Judiciário, o equilíbrio de forças, estando o Supremo Tribunal Federal, nesse cadinho, como protagonista maior dentre os Poderes, ora dando respostas políticas, ora decidindo as relações entre indivíduos, agindo como mediador.
“A CPI que a princípio surgiu como um exagerado propósito de incriminar pessoas do governo, trouxe para o público o que se passava nas entranhas do Ministério da Saúde e o descaso com a aquisição de vacinas”
O problema está, na minha visão, no equilíbrio das respostas políticas que têm ampla repercussão na vida cotidiana dos cidadãos, a exigir coerência entre o discurso político e as respostas dirigidas ao povo. A divergência entre as duas falas fragiliza o papel do Poder que dá a última palavra, fazendo-se desacreditado pela população que hoje, detentor de voz facilitada pelas redes sociais, cobra de forma veemente e, muitas vezes, desrespeitosas respostas coerentes com os seus interesses (anseios populares), ao tempo em que exigem dos Poderes Legislativo e Executivo respostas adequadas às suas expectativas, geradas principalmente pelas promessas de campanha. Há ainda uma terceira via de complicação: as desavenças institucionais que fragilizam os Poderes Republicanos, com avanços e recuos. Há evidente retrocesso na tentativa de equilíbrio de forças entre os Poderes. Em resumo, as instituições estão funcionando, embora funcionem mal, e o Supremo Tribunal Federal não tem sido capaz de bem cumprir sua missão constitucional e, por isso, está a sofrer um enorme desgaste.
RPD: Uma das características do funcionamento do Estado, nos últimos anos, tem sido o ativismo judicial, assim chamado, ou protagonismo do Poder Judiciário. Em alguns lugares, chega-se a mencionar a existência de uma guerra jurídica ou do uso do direito para fins políticos, o chamado lawfare. Como vê isso, especialmente diante da experiência brasileira recente da Lava-Jato e das decisões recentes do Supremo Tribunal Federal sobre essa operação?
EC: Vejo com preocupação. A Constituição Federal de 88 trouxe grande modificação para o Judiciário, tornando a magistratura mais independente. Dizia-se que o juiz era a boca do legislador; as suas respostas eram de acordo com a lei por ele aplicada; hoje é apenas um referencial, pois ao julgador cabe não simplesmente aplicar a lei, e sim a missão de solucionar os conflitos sociais. Afinal, juiz existe para levar a paz à sociedade a qual serve, usando como parâmetros a lei. A aplicação literal da norma, muitas vezes, é capaz de ocasionar conflito. Daí o entendimento existente nas mais modernas constituições, ao dar ao magistrado maior liberdade na condução das soluções dos conflitos de interesses, observando com severidade a aplicação dos princípios constitucionais. No passado, as premissas maiores eram os fatos, e a premissa menor, a lei, cabendo ao julgador inserir os fatos à norma, como se a lei fosse um modelo pronto, uma espécie de “prêt-à-porter” à espera de um usuário, o jurisdicionado. Essa forma moderna e constitucionalmente admitida de julgar, deu ensejo ao ativismo judicial, termo técnico que define a atuação expansiva e proativa do Poder Judiciário ao interferir em decisões de outros poderes.
O ativismo do Poder Judiciário no Brasil é intenso, especialmente no Supremo Tribunal Federal. O grande problema é que a magistratura está mal preparada para aplicar o ativismo de forma escorreita e isenta, deixando claros resíduos de utilizarem os julgadores critérios político partidários para decidir. Esses resíduos transparecem na mudança costumeira das decisões, na alteração da jurisprudência a depender do ator em julgamento, no desprezo dos princípios para fazer uma interpretação rasa da lei etc., provocando insegurança jurídica, de tal ordem, que leva os jurisdicionados a não respeitarem a instituição a quem compete falar por último. Isso aconteceu quando do julgamento de alguns processos da Operação Lava Jato, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal, desprezando as normas procedimentais, criou uma série de artifícios, mudou a sua jurisprudência e, por fim, sem mais espaço, passou desqualificar os atores procedimentais, juízes e membros do Ministério Público. Essa forma de proceder fez do Supremo senhor absoluto, colocando-o acima dos dois outros Poderes ao tempo em que desprezou a vontade da sociedade brasileira que já enxerga a corrupção como o maior mal à democracia.
“O ativismo do Poder Judiciário no Brasil é intenso, especialmente no Supremo Tribunal Federal. O grande problema é que a magistratura está mal preparada para aplicá-lo de forma escorreita e isenta”
RPD: Como avalia o governo Bolsonaro e o enfrentamento da pandemia já em seu segundo ano? E, nesse contexto, que papel poderá ter a CPI, ora em andamento no Congresso Nacional?
EC: De forma absolutamente isenta de qualquer conteúdo ideológico, avalio que a fragilidade institucional do Poder Executivo, provocada em grande parte pelo despreparo político, técnico e emocional do seu condutor, o Presidente da República, tem sido desastrosa para o país. Aliada à essa fragilidade, o Parlamento mostra-se também pouco rígido, especialmente pela dificuldade de enfrentar um Judiciário que, a partir de 2013, assumiu o papel de defesa dos cofres públicos, ocupando-se com grande empenho a combater a corrupção que, de forma sistêmica e secular, instalou-se nas entranhas dos Poderes. A atuação do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário provocou verdadeira revolução interna, posicionamento que o Governo Bolsonaro não aceitou. Assim, unindo-se aos parlamentares que, de igual modo, nunca aceitaram o protagonismo de combate à corrupção, iniciou-se, no Brasil, um desmanche dos órgãos de controle do Estado tais como Receita Federal, COAF, ENCCLA; outros órgãos estão sendo cooptados para servirem ao governo e não ao Estado, tais como Polícia Federal e ABIN. Encetou-se, de forma inescrupulosa, sério ataque ao Ministério Público Federal, fragilizando sua atuação, desacreditando-o perante a opinião pública, disseminando-se discórdia entre seus membros.
Ao Legislativo, coube o papel de promover o recorte de diversos e importantes diplomas legais, com o afã de promover o desmanche dos mais severos instrumentos de combate à corrupção, tais como a Lei de Improbidade Administrativa, a Lei da Ficha Limpa, a Lei de Acesso às Informações; com uma nova Lei de Abuso de Autoridade, procurou-se inibir a atuação das autoridades a quem cabe investigar, indiciar, denunciar e prender os corruptos do país. Por último, avizinha-se ser levado para desmanche a lei eleitoral, quebrando-se a transparência do que se passa nas entranhas dos partidos políticos, empurrando para a penumbra os gastos com as campanhas eleitorais, agora financiadas pelos cofres públicos, como também arquiteta-se manter em sigilo o patrimônio dos candidatos a cargos eletivos. O mais execrável é que esses desmanches estão sendo feitos sem transparência, sem audiência do público interessado e em processos rápidos e emergenciais, de forma quase imperceptível. O Supremo Tribunal Federal assiste a tudo isso como um convidado de pedra.
“Acho um retrocesso falar em voto impresso. O voto eletrônico já foi usado com sucesso em diversas eleições, é um voto moderno e colocou o Brasil à frente de muitas nações desenvolvidas, além de ter acabado com a chicana reinante nas eleições anteriores”
E quando pensamos que nada mais pode piorar esta forma de governança, estamos a conviver, há quase dois anos, com a pandemia. Pergunta-se: e como foi conduzida? De forma desastrosa, com um incompreensível negacionismo, desrespeito à política de saúde pública traçada pela Organização Mundial da Saúde da qual faz parte o Brasil, absoluto desprezo pelas advertências dos médicos sanitaristas nacionais e internacionais. Mais uma vez, valendo-se da falta de transparência, o governo procurou, mais uma vez, ocultar os números alarmantes de pessoas infectadas e o número de óbitos ocasionados pela pandemia. Para que a nação tivesse conhecimento dos números reais da pandemia, foi necessário que um grupo independente de jornalistas credenciados tomassem as rédeas das estatísticas, indispensáveis para traçar qualquer estratégia de enfrentamento à Covid-19. A CPI que a princípio surgiu como um exagerado propósito de incriminar pessoas do governo, trouxe para o público o que se passava nas entranhas do Ministério da Saúde e o descaso com a aquisição de vacinas, única forma de vencer a pandemia.
RPD: Ainda está na pauta da conjuntura nacional política a questão do voto impresso. Qual sua opinião a respeito?
EC: Acho um retrocesso falar em voto impresso. O voto eletrônico já foi usado com sucesso em diversas eleições, é um voto moderno e colocou o Brasil à frente de muitas nações desenvolvidas, além de ter acabado com a chicana reinante nas eleições anteriores, quando já se sabia, antecipadamente, que haveria fraude eleitoral, e a fiscalização partidária contentava-se em lutar pelo grau mais discreto possível de desvios. Somente no pleito antecedente, em 2018, é que surgiu a desconfiança quanto ao voto eletrônico e por parte dos que ganharam as eleições, ironicamente. Tema que voltou agora à pauta, quando cresce o descontentamento quanto à utilização do voto eletrônico. Diante de tanta celeuma e de tantas ameaças, entendo que, prudentemente, para virarmos a página dessa discussão que mais parece uma cortina de fumaça, será razoável aceitar o voto auditável, que possibilita conferência, quando há alguma desconfiança. Assim, caminharemos com mais segurança e transparência.
Saiba mais sobre a entrevistada
Eliana Calmon
Primeira mulher a integrar o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 1999, a ex-ministra baiana, Eliana Calmon lecionou na UFRN, UFBA, UCSAL e na Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal. Foi eleita Corregedora Nacional de Justiça (2010/ 2012) e Diretora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, aposentando-se em dezembro de 2013. Estabeleceu-se em Brasilia como advogada (2015). Presidente honorária do Instituto Baiano de Compliance (2016) e eleita como integrante do Instituto dos Advogados do Distrito Federal (2021). Ativa partícipe dos movimentos feministas, está associada à Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica – ABMCJ. Autora de diversos trabalhos, entre outros, sobre o Código Tributário Nacional e Direito Processual e acumula inúmeros prêmios, medalhas, condecorações e homenagens.
Saiba mais sobre os entrevistadores
Caetano Araújo
É graduado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1976), mestre (1980) e doutor (1992) em Sociologia pela mesma instituição de ensino. Atualmente, é diretor-geral da FAP e consultor legislativo do Senado Federal. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica e Sociologia Política.
George Gurgel
Professor da UFBA, da Oficina da Cátedra da Unesco em Sustentabilidade. Conselheiro do Instituto Politécnico da Bahia e da diretoria do Museu da Cultura Afro-brasileira da Bahia.
Arlindo Fernandes de Oliveira
É advogado, especialista em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público, IDP, especialista em Ciência Política pela Universidade de Brasília, UnB, bacharel em direito pelo UniCEUB. Foi assessor da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte (1984-1092), analista judiciário do Supremo Tribunal Federal (1992-1996) e assessor da Casa Civil da Presidência da República (1995). Professor de Direito Eleitoral no Instituto Legislativo Brasileiro, ILB, desde 2004. Desde 1996, consultor legislativo do Senado Federal, Núcleo de Direito, Área de Direito Constitucional, Eleitoral e Processo Legislativo.
André Amado
É escritor, pesquisador, embaixador aposentado e diretor da revista Política Democrática On-line. É autor de diversos livros, entre eles, A história de detetives e a ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.