Defendendo armas e combatendo radares, ele já desprezou a vida
Rainha da Inglaterra? Nada disso. Bolsonaro é muito diferente. Elizabeth II fala corretamente seu idioma, é informada, tem compostura e respeita os limites constitucionais. Nunca menosprezou a cultura, nem a ciência, nem a vida de seus súditos. O presidente brasileiro foi comparado à rainha, impropriamente, porque o ministro da Saúde tem dado pouca atenção a seus palpites.
Além disso, milhões de cidadãos apoiam o isolamento social, contrariando a orientação do assim chamado chefe de governo. Nem no Executivo suas palavras são levadas a sério, como nos primeiros tempos. No entanto, o capitão é a mesma figura, coerente no despreparo, na pobreza intelectual, no menosprezo à vida de seus concidadãos e no desprezo à ciência.
“Infelizmente algumas mortes terão”, disse o presidente, em seu dialeto, no dia 27 de março. “Paciência, acontece, vamos tocar o barco”, acrescentou. Segundo ele, as consequências do esfriamento econômico seriam “mais danosas do que o próprio vírus”. Traduzidas para o português corrente, essas palavras só podem significar: as mortes de alguns milhares de pessoas, nesta altura, são preferíveis às perdas de produto e renda, à quebra de algumas empresas e ao provável aumento do desemprego. Que as perdas econômicas sejam superáveis, ao contrário das perdas de vidas, parece ter pouca ou nenhuma importância para sua excelência.
Esse menosprezo à vida alheia foi novamente exibido, em Brasília, dois dias depois. “Vamos enfrentar o vírus com a realidade”, propôs o presidente. “É a vida. Todos nós iremos morrer um dia”, continuou. E então? Se todos morrerão um dia, será isso um motivo para atravessar a rua sem cuidado ou para jogar bituca de cigarro num posto de gasolina? Ele falou, enfim, como se a certeza da morte como destino final de cada um tornasse a vida um traste sem valor. Detalhe interessante: esses comentários foram feitos durante um passeio em Brasília, no meio de um ajuntamento, situação propícia ao contágio, à multiplicação de doentes e, portanto, ao risco de morte para muitas pessoas.
Ninguém se espantará com essa atitude se lembrar o presidente Bolsonaro nos primeiros meses de mandato. Facilitar a posse e o porte de armas foi uma de suas prioridades. Desemprego elevado e economia emperrada nunca tiveram destaque em seus pronunciamentos, até recentemente. Muito mais importante era armar a população. Ele também se empenhou, em 2019, em relaxar os controles de segurança nas estradas, defendendo a remoção e a redução de radares. Propôs, além disso, a ampliação do limite de pontos por infrações de trânsito.
Mais armas de fogo, mais pontos na carteira e menor controle por meio de radares são claros sinais de desprezo à vida. Tão claros quanto a negação do risco de contágio e de morte pelo novo coronavírus. A comparação da covid-19 com uma gripezinha já virou assunto internacional. Motivo de escândalo fora do Brasil, essa atitude foi citada, num comentário reprovador, pelo primeiro-ministro da Grécia, Kyriákos Mitsotákis. Depois de apontar o erro do presidente brasileiro, Mitsotákis lembrou a proteção da vida como primeira obrigação de seu governo.
Segundo Bolsonaro, a maioria das pessoas precisa trabalhar, muitas delas sem perder um dia. É verdade, mas hoje é preciso, em primeiro lugar, proteger a vida dessas pessoas. É obrigação do Estado. Com alguma demora, o ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu essa tarefa e montou, com sua equipe, um plano de ajuda aos trabalhadores mais vulneráveis e a seus empregadores. O plano pode ter falhas, mas é uma resposta séria à emergência. O governo pouco fez em 2019 para desemperrar a economia e criar empregos. Não por acaso o produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1%, taxa menor que a do ano anterior, 1,3%. Mas a equipe econômica se dispôs, enfim, a enfrentar a pandemia, dando atenção aos trabalhadores e suspendendo a arrumação fiscal, com apoio do Congresso.
E o presidente, por que se mostra tão interessado, afinal, pela saúde da economia, depois de haver negligenciado o assunto no ano anterior? Pode ser difícil uma resposta precisa, mas há uma explicação pelo menos compatível com seu perfil: além de atender a pressões empresariais, ele tenta reverter o desgaste político, preocupado com seu grande objetivo pessoal, a reeleição.
O presidente Bolsonaro também é coerente ao desprezar a ciência. O desprezo se manifesta quando ele se opõe ao isolamento social, contrariando a experiência estrangeira, assim como as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Fica também evidente quando ele insiste em difundir o uso da cloroquina. A substância tem sido usada em casos graves, mas faltam dados sobre sua eficiência para outros pacientes. Além disso, cardiologistas apontam efeitos colaterais, com risco de morte. Esse Bolsonaro é aquele mesmo empenhado, em 2019, em negar as informações do Inpe, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. O presidente de hoje, enfim, é o mesmo das queimadas, da recusa da ciência e da guerra à cultura.
*Jornalista