Até o TCU entra na briga pelo Estado de Direito contra a política de Bolsonaro
Democracia tem tudo a ver com imprensa livre – imprensa de verdade, conduzida de forma aberta e responsável – e essa verdade tem sido comprovada no dia a dia do governo Bolsonaro. O presidente mantém uma simetria perfeita entre seus atos contra as instituições, como a presença em manifestações golpistas, e, de outro lado, o combate constante aos meios de comunicação profissionais e o apoio às centrais de mentiras e de mensagens de ódio. O horror do presidente e de seus minigoebbels ao jornalismo decente já ultrapassou as fronteiras da política. Tornou-se um fato também contábil, como demonstra, por exemplo, o parecer preliminar do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre as finanças federais de 2019.
Com 14 ressalvas, 21 recomendações e 7 alertas, o parecer recomenda, apesar de tudo, a aprovação do balanço encaminhado pelo presidente da República. Mas passa longe de recomendar o comportamento presidencial em relação às instituições e à sociedade ferida pela pandemia de covid-19. Ao apresentar o documento, numa sessão virtual, o relator do processo, ministro Bruno Dantas, propôs em primeiro lugar um minuto de silêncio em homenagem às vítimas do novo coronavírus. Foi um gesto de respeito raramente esboçado pelo presidente Jair Bolsonaro, até a sessão ministerial transmitida ao vivo, há poucos dias, numa encenação de seriedade governamental.
“A democracia brasileira pode ser jovem”, disse o ministro, “mas seu conceito não é recente, nem é efêmera sua construção. O abalo dos alicerces de nosso Estado de Direito Democrático não é um mero recuo à década de 60 do século passado. É um recuo de oito séculos, ao período medieval”. Ele falava, nesse momento, da cooperação, da independência e do respeito entre os Poderes, noções frequentemente renegadas, com sua anuência silenciosa, por apoiadores do presidente. Mas às vezes, de fato, nem tão silenciosa, como quando ele anuncia – para em seguida se corrigir – a disposição de rejeitar decisões do Judiciário ou do Legislativo.
A defesa do Estado Democrático de Direito foi mais detalhada quando o ministro examinou a relação do Executivo com os meios de comunicação. A distribuição de verbas de publicidade, comentou, tem seguido “critérios pouco técnicos”. Mencionou conflitos com a Folha de S.Paulo e a ameaça de não renovar a concessão da Rede Globo.
“Por certo”, concluiu o ministro nessa parte, “esse assunto não se esgotará aqui, devendo toda a sociedade e este tribunal ficar vigilantes, atentos e zelosos pela regularidade, legitimidade e economicidade dos gastos com comunicação social do governo federal, visando a garantir a isonomia de tratamento entre os veículos, a imprensa livre e o compromisso com a verdade.”
Lambanças do governo com verbas de comunicação haviam sido denunciadas no começo de junho pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Fake News. Uma semana antes de aparecer o relatório do TCU, o público já havia sido informado sobre a destinação de verbas a canais nada ortodoxos, dedicados, por exemplo, à pornografia, a jogos de azar, à promoção da figura do presidente e, é claro, à difusão de fake news. Segundo o relatório, elaborado por consultores legislativos, mais de 2 milhões de anúncios foram publicados em sites dessa qualidade num curto intervalo, em 2019. Dados da própria Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom), referentes a junho e julho, foram usados pelos consultores.
A maior parte dos anúncios foi destinada, segundo o relatório, à promoção da reforma da Previdência. O projeto foi defendido até em sites de atividades ilegais, como um dedicado à publicação de resultados do jogo do bicho. Entre os mais favorecidos havia 14 canais destinados ao público infantojuvenil, um deles caracterizado pelo uso do idioma russo. Sites de notícias falsas foram identificados em posições de destaque, assim como páginas de apoiadores do presidente Bolsonaro.
Divulgado o relatório, a direção da Secom tratou de se defender numa nota. Segundo o texto, a destinação das verbas era decidida pelo sistema Google AdSense, por meio de um algoritmo. A explicação deveria caber, portanto, ao Google. O responsável pela Secretaria de Comunicação exibiu, na tentativa de defesa, ignorância de noções fundamentais de administração. Um gestor pode transferir e até privatizar tarefas, mas a responsabilidade é intransferível. Mais que chocante, o desconhecimento ou menosprezo desse fato é inaceitável quando se trata de gestão pública – mais precisamente, de dinheiro público.
Os muito otimistas poderão apostar em mudanças. Descumprindo mais uma de suas promessas, o presidente acaba de recriar o Ministério das Comunicações. Escolhido para o posto, o deputado Fábio Faria (PSD-RN) é genro do empresário Sílvio Santos. O ex-chefe da Secom será secretário-geral, isto é, vice-ministro. Só haverá mudança, obviamente, se o novo ministro renegar a política da Secom e do presidente e seguir os valores do Estado Democrático de Direito. Como fazer isso e ao mesmo tempo obedecer a um Bolsonaro?