O maior desafio tem sido conceber uma proposta que seja passível de aprovação no Congresso
‘Agora vou mudar minha conduta/ Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar”. É como Noel Rosa inicia “Com que roupa?”, uma de suas músicas de maior sucesso, lançada em 1930, que o compositor via como metáfora de “um Brasil de tanga, pobre e maltrapilho”. Talvez por isso, há quem ache que a melodia do primeiro verso evoca a do verso inicial do Hino Nacional.
Passados quase 90 anos, o tema não poderia ser mais atual. Conseguirá o Brasil mudar sua conduta? Será o país capaz de conter sua desastrosa inconsequência fiscal e, afinal, restringir os gastos públicos a limites condizentes com a carga tributária que a sociedade se dispõe a aceitar para financiar os três níveis de governo? Com que proposta de reforma da Previdência o governo pretende deflagrar sua primeira grande batalha pela mudança do insustentável regime fiscal que hoje tem o país?
A concepção e o detalhamento da reforma têm sido uma operação complexa, que vem tendo lugar há vários meses, desde o fim de outubro. Um passo inicial de grande importância foi dado pelo próprio ministro da Economia. Ao se desapegar de ideias preconcebidas e resistir à tentação de reinventar a roda, Paulo Guedes pôde tirar bom proveito de duas décadas de reflexão coletiva que redundaram na proposta de reforma do governo Temer e, mais recentemente, na proposta mais ambiciosa de Arminio Fraga e Paulo Tafner.
Na concepção da reforma, o ministro de Economia se vê obrigado a conciliar ousadia e viabilidade política. De um lado, a reforma tem de ser profunda e abrangente, para que possa fazer diferença no descalabro fiscal que hoje vive o país. De outro, tem de ter passagem, não só no âmbito do Poder Executivo, como no Poder Legislativo, que terá a palavra final sobre as mudanças propostas.
Não tem sido fácil explorar os limites do possível dentro do próprio governo, em cujo núcleo convivem visões muitos distintas sobre o grau de ousadia que deveria pautar a reforma. As recentes declarações desencontradas da cúpula do governo, acerca do teor da proposta de reforma que teria sido preparada pelo ministério da Economia, mostram que a discussão interna ainda não foi encerrada.
O maior desafio, contudo, tem sido conceber uma proposta de reforma que seja passível de aprovação no Congresso. Fragmentado, menos experiente e desprovido de grandes lideranças como agora está. E, quanto a isso, não deve haver ilusões. A resistência mais vigorosa à reforma advirá da enorme influência que o funcionalismo público ainda tem sobre deputados e senadores.
Como já argumentei em artigo publicado neste mesmo espaço há cerca de um ano, tal influência não decorre apenas da preocupação de cada parlamentar com a parcela do seu eleitorado constituída por servidores públicos. Isto pode até explicar o comportamento das bancadas do PT e de outros partidos de esquerda, ou de representantes ostensivos de corporações específicas do funcionalismo, como, por décadas, foi o caso de Jair Bolsonaro, na Câmara.
Pode também explicar o comportamento de parlamentares oriundos de unidades da Federação em que grande parte do eleitorado é composta por funcionários públicos e seus familiares, como é o caso do novo presidente do Senado. Mais da metade dos eleitores de Davi Alcolumbre reside em Macapá, cidade em que o funcionalismo público detém um terço de todos os empregos formais.
Para a maior parte dos parlamentares, contudo, as razões da resistência à reforma parecem ser bem mais simples e diretas. Com frequência, o parlamentar está enredado por complexa teia de interesses de toda uma extensa parentela de funcionários públicos — quase sempre bem posicionados —, tanto em Brasília como nos estados: cônjuge, pais, irmãos, cunhados, filhos, genros, noras, sobrinhos e netos.
Falta ainda um mapeamento mais objetivo das reais proporções desse enredamento que, em boa hora, poderiam ser levantadas pela mídia ou por esforços de pesquisa mais ambiciosos.
Conseguirá o Brasil superar tais resistências e, afinal, começar a mudar sua conduta?