Transição para a democracia eleva o PIB per capita em 20% em 25 anos, indica pesquisa
O governo federal pode ser compreendido como a aliança de quatro grandes blocos vivendo em um mesmo condomínio: o econômico, o militar, o jurídico e o de costumes. Apesar de serem vizinhos, tem sido comum a percepção de parcela da sociedade de que os blocos são independentes, têm a sua própria portaria e o que ocorre em cada um tem caráter autônomo. São frequentemente celebradas as vitórias da agenda liberal na economia, por exemplo, mas minimizados os impactos das medidas da ala ideológica, como se fosse mais um ruído daquela turma barulhenta lá do bloco do fundo.
Os blocos, de fato, têm perfis, importâncias, qualidades e realizações distintos e, às vezes, contraditórios e complementares. No entanto, é impossível ignorar que um condomínio, como um governo, funciona de forma sistêmica. Assim, quando um secretário adensa o estoque de elogios a Estados despóticos e divulga vídeo com citações de discursos de ministro nazista, seu efeito vai muito além do endereço reservado para os “costumes”. Ele se esparrama por todos os espaços do condomínio.
Foi acertada, portanto, a decisão do presidente de exonerar seu secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, que ultrapassou todos os limites. Mas é preciso ressaltar que ele não é o centro do problema. Alvim pode ser visto como mais um sintoma do grupo de políticos que chegou ao poder, pelas vias democráticas, elogiando Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Já foram debatidos os efeitos corrosivos dos ataques às pesquisas científicas e ao combate da mudança climática, além do pouco caso com o multilateralismo, não só para a reputação do Brasil como para a economia do país. Mas há outra questão que também impõe um teto importante para a falsa ideia de autonomia do bloco econômico e a “agenda liberal” que se configura por aqui: o cerceamento da liberdade.
Há evidências acadêmicas de correlação entre o crescimento econômico e a liberdade dos cidadãos de um país. A liberdade é motor da inovação, do empreendedorismo e de novas formas para melhorar a produtividade, o que levaria a um maior desenvolvimento, especialmente nesse momento de transformações tecnológicas gigantescas. Esse empoderamento criativo nasce da diversidade, dos sonhos, dos projetos e das paixões das pessoas, o que floresce muito melhor se não houver o controle do Estado sobre os seus cidadãos.
Parece poesia, mas essa tese é de Daron Acemolgu, premiadíssimo professor do MIT e um dos economistas mais citados no mundo, e do cientista político James Robinson, professor da Universidade de Chicago.
Ambos são autores do best-seller “Por que as Nações Fracassam” (Elsevier) e do recém-lançado “Narrow Corridor” (Corredor estreito), em que analisam a relação entre política e economia ao longo da história e concluem: a prosperidade de um país depende do equilíbrio entre o poder do Estado e o da sociedade, que se dá num espaço limitado, no corredor estreito formado entre o autoritarismo e um mundo sem lei.
Segundo Acemoglu e Robinson, para a liberdade existir, é necessário um Estado tão forte quanto uma sociedade mobilizada. É nesse jogo, numa espécie de competição e cooperação, que se dá a garantia da liberdade. Se o Estado é poderoso demais, abala o equilíbrio. Se a sociedade se torna indiferente às leis e às instituições, a liberdade fica comprometida em guerras ou presa a estruturas tribais.
Com essa perspectiva, os autores são críticos do populismo, que compromete o crescimento ao desviar-se do corredor estreito. Seus elementos antipluralistas e excludentes minam as instituições e os direitos democráticos básicos. Mas não só. Favorecem a concentração excessiva do poder político e a desinstitucionalização, levando a um déficit na oferta dos serviços públicos e a um desempenho econômico abaixo da média.
A noção de liberdade do livro é baseada em John Locke, pai do liberalismo: uma sociedade deve ser livre da violência, da intimidação e de atos humilhantes para que as pessoas possam fazer escolhas para suas vidas e tenham meios para viver sem ameaças de punições descabidas ou sanções sociais draconianas.
Confiança, não temor, é o que torna um Estado forte, constatam. Mas eles advertem, a consolidação democrática implica passar por um processo de embates, plural, atento às diferenças, o que pode gerar frustrações – um terreno fértil para os populistas.
Numa pesquisa anterior ao livro, “A Democracia Causa Crescimento Econômico”, Acemoglu e Robinson já haviam obtido dados importantes. Eles se juntaram a Suresh Naidu e Pascual Restrepo e constataram o peso dos regimes democráticos sobre o PIB: um país que transita de um regime autoritário para a democracia tem um PIB per capita 20% maior nos 25 anos seguintes.
Os quatro analisaram a evolução econômica de diversos países de 1960 a 2010, período com grande transição de regimes políticos, especialmente depois da queda do Muro de Berlim. Nos anos 1990 e 2000, o mundo viveu sob uma espécie de triunfo do livre mercado e da democracia liberal. Mas vieram a crise de 2008, a desconfiança desse modelo, o aumento da desigualdade, o crescimento de atos violentos por causa da xenofobia… enfim, o fortalecimento do autoritarismo ao redor do globo e a ascensão da direita radical em vários países importantes. Com isso, a noção de democracia ficou abalada.
Certamente a China tem um papel importante para a percepção de que as instituições democráticas são irrelevantes para o crescimento econômico. Para alguns acadêmicos, o país estaria em vias de provar que o desenvolvimento pode até prescindir da democracia. Ou seja, o êxito pode ocorrer em um país mesmo com milhões de câmeras de reconhecimento facial para monitorar seus cidadãos.
A interrogação de muitos é menos misteriosa aos olhos dos autores. Com base numa pesquisa histórica de séculos, os dois advogam que o Partido Comunista da China será tão forte, mas tão forte, que impedirá o país de se tornar rico. Isso vai destruir, sobretudo, o progresso, que, segundo Robinson e Acemoglu, também está baseado na liberdade dos cidadãos para inovar, inventar e empreender, um movimento fundamental para os desafios deste século.
Diante dessa análise, vale perguntar para os que renunciam aos valores democráticos: será que os ruídos daquela turma barulhenta lá do bloco do fundo são mesmo inócuos para a economia?
*Robinson Borges é editor de cultura.