Roberto Romano: Política e falsificação

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Foto: Marcos Corrêa/PR

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando

Em livro pouco discutido no Brasil, Jean Pierre Faye analisa um documento diplomático, bélico e político da Alemanha em conflito com a França no século 19. Falo do Despacho de Ems, que se liga a Bismarck. Em 13 de julho de 1870, Guilherme I reuniu-se com o embaixador francês. Do encontro resultou um comunicado em forma de telegrama, de imediato remetido ao Chanceler de Ferro. O político tomou o texto, cortou-o em pedaços e fez de certa declaração anódina um insulto à França. Rápido, ele enviou o documento falso para a imprensa europeia. Os dirigentes da Europa tiveram em mãos no dia seguinte uma bomba poderosa contra os tratos pacíficos. O suposto insulto à França nos trechos manipulados levou-a a declarar guerra à Alemanha.

Apenas 20 anos mais tarde Bismarck reconheceu ter falsificado o telegrama. Ele mesmo apresentou o seu truque. Mas já em 1873 um deputado alemão dizia claramente que o autor da mentira era o dirigente do país. Um jornal de Viena, em 1892, contou a maneira como foi deturpado o telegrama e citou as próprias sentenças de Bismarck sobre a proeza: do texto, diz ele, “deixei apenas a cabeça e a cauda. Assim o telegrama parecia algo completamente distinto. Li-o para Moltke e Roon segundo a nova versão. Ambos exclamaram: ‘Esplêndido, causará efeito!’. Almoçamos com o maior apetite”. Faye comenta: que uma falsificação tenha sido tomada pelos adversários como insulto, compreende-se. Mas que o rei prussiano, conhecedor do texto original, tenha acolhido a patranha é algo que mostra o poder das manipulações quando os ânimos assumiram a guerra da propaganda que antecede o morticínio de seres humanos.

O truque bismarckiano possibilitou uma guerra, contribuiu para unificar a Alemanha, piorou o sentimento antigermânico na França, ajudou a semear a 1.ª Guerra Mundial, que fortaleceu os ódios cujo fruto foi o nazismo. Falsificar notícias era prática comum dos políticos europeus, vezo cujo ápice se deu no reinado de Goebbels, inimigo dos jornais que não jurassem pela sua cartilha imunda. Goebbels foi capaz de manipular redações em favor do mando totalitário. As análises de Faye são complexas e ajudam a entender a falsificação das declarações oficiais em regimes que abolem as liberdades, a começar pela de imprensa. Além da edição francesa original, temos uma excelente tradução espanhola (Los Lenguajes Totalitarios, Ed. Taurus). Em nossa língua existe o volume da Editora Perspectiva, sob o título Introdução às linguagens Totalitárias: Teoria e Transformação do Relato.

Em 31 de março de 2020 o presidente Jair Bolsonaro falsificou um texto emitido pelo presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a quarentena no combate ao coronavírus. O responsável pela instituição dizia ser obrigatória a ajuda aos que não têm renda, para que a medida seja bem-sucedida. Lépido, o nosso presidente “cortou a cabeça e a cauda” do texto e anunciou nas redes sociais a “tese”da OMS, que seria exatamente igual à sua, a reclusão vertical. E, claro, repisando a volta do comércio, da indústria, de todas as atividades econômicas e sociais à “normalidade”.

A prática de Bolsonaro não é inédita. E nenhuma originalidade existe na fabricação, por governantes, de fake news que os beneficiem. Desde a Grécia democrática existiram manipuladores de fatos e discursos. Um crítico poderoso de semelhantes boateiros é Platão. A guerra contra os demagogos e sofistas definiu a ética a ser assumida pelos que recusam o servilismo. O universo governamental desde então se divide entre os dirigentes que não reconhecem limites em falas e atos e os dirigidos para os quais o verdadeiro não é luxo, mas gênero de primeira necessidade.

Entre os que manipulam eventos e discursos, alguns chegam à condição de estadistas, para o bem e para o mal. É o caso de Bismarck, gênio político que beneficiou sua gente, por um lado, e a lançou no abismo da morte, por outro. O telegrama de Elms está inscrito entre os pontos relevantes da História moderna. Mas os pequenos artesãos do falso, como Goebbels, só ajudaram a apressar a morte de seu povo, tendo como prefácio a matança que levou ao Holocausto. Não existe falsificação inócua e todas produzem, como expõe Faye, os efeitos deletérios do poder que aspira a abolir limites éticos em seu exercício.

Com ódio à liberdade de oposição e à imprensa, Bolsonaro segue a via da pequenez no mando. Ele esquece, no entanto, a distância entre a sua falsificação e a de Bismarck. No século 19 não existiam rádio, TV, internet, redes sociais. Ainda era possível reunir jornalistas e veicular um texto adulterado como se fosse verdadeiro. Hoje não é possível fazer o mesmo: para além dos seguidores incondicionais, milhões e milhões de seres divergem do governante. Eles publicam o texto inteiro de todas as declarações. Mentir após falsificar uma fala ou ato é tarefa impossível.

Uma nota final: Bismarck era Bismarck, Bolsonaro é Bolsonaro.

*Professor da Unicamp, é autor de ‘Razões de Estado e outros estados da razão’ (Perspectiva)

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