Quem nega que o vitorioso será o político que mais cativar, com mentiras e lisonjas…?
Nas atuais eleições é notável o uso de mentiras e violência. Muito se discutem o voto eletrônico e as informações falsas veiculadas na internet. Os pronunciamentos de Rosa Weber, presidente do TSE, não amainam as suspeitas sobre a eficácia das medidas contra fraudes e manipulações das notícias. Mergulhados na vida recente, imaginamos enfrentar um fenômeno inusitado, a crise letal do sistema democrático. No entanto, desde a Grécia antiga esse modo de governar beira o abismo. Recordo alguns escritos clássicos de Platão, o maior adversário do governo popular. Eles trazem um diagnóstico válido para nossos tempos.
O povo que segue o palpite de pessoas sem técnica na arte política, segundo Sócrates, só pode ser doente. Em vez da prudência nos assuntos de Estado, ele obedece ditames que pioram as mazelas. Como o milagre é efetuado? Pela demagogia nas assembleias onde dominam a retórica e a lisonja . Em vez de rir ou caçoar dos que mentem e adulam a massa, o povo adoentado os aplaude e os elege para os cargos, submete-se à sua propaganda. Como curar um coletivo insensato? O símile do médico surge depressa em Platão. Para conseguir a higidez dos eleitores, pergunta o personagem socrático: “Eu deveria batalhar contra eles para os fazer melhores, como se fosse um médico? Ou me pôr a seu serviço e em ótimas relações com eles lhes agradar?”.
Com a resposta de seu parceiro, de que o mais avisado seria se pôr à disposição dos eleitores, Sócrates afirma: “Então eu devo lisonjeá-los”. E chega a premonição, pelo próprio filósofo, da sua própria sorte: dizer o verdadeiro à massa que deseja ser enganada é seguir para a morte. A cicuta destina-se aos inimigos de toda demagogia. Contra os políticos, Sócrates descreve a si mesmo como integrante do pequeno número dos estadistas (“talvez o único”, diz ele). Quando falo, minhas palavras não se destinam ao agrado, pois digo “o que é melhor, não o prazeroso”.
Vem a célebre comparação do médico e do mestre-cuca, símile que deveria estar na mente de todos os políticos ou eleitores verdadeiramente democráticos. Um médico é acusado pelo cozinheiro em tribunal de crianças. Como poderia ele se defender das acusações feitas pelo cozinheiro? “Crianças, eis aqui um homem que lhes causa muitos males. Ele esfola até os novinhos, corta ou queima, disseca e sufoca de tal modo que vocês não sabem onde se esconder. Ele obriga a tomar remédios amargos, a ter fome e sede! Ele não é como eu, pois sirvo doces para seu regalo!”. Paralisado, o médico não consegue dizer a verdade: “ Tudo faço para a sua saúde!”. O povo criança adoecida só escuta a lisonja, a mentira. A verdade é-lhe insuportável.
Em tempos de fake news, a maior é dizer que elas surgem com a internet. Seu nascimento se deu quando a linguagem, uma técnica que possibilita a sociedade, foi inventada. A fala revela paixões ou dissimula gestos amáveis em atos agressivos. A política não existe sem mentira, propaganda, demagogia. Da Ágora, onde os únicos instrumentos persuasores eram a boca e o corpo, à televisão e ao WhatsApp, passar adiante o falso é tarefa estratégica de qualquer liderança que reúne massas.
A busca de agradar e mentir chega ao ápice com as práticas de Goebbels, Walter Lippmann e o Agitprop soviético. No tremendo A Língua do Terceiro Reich, Viktor Klemperer mostra a locução diabólica do mundo ideologizado. Quando a mentira se universaliza a doença política atinge o seu grau máximo, a corrupção popular. A massa assassina quem diz algo verdadeiro ou exige disciplina ética e respeito à lei. Chegamos à situação descrita na República (488 aC). O navio do Estado, nave dos loucos, assiste à guerra dos marinheiros pelo comando, sem que nenhum deles tenha saber técnico apropriado. “Eles elogiam e tratam como marinheiro sapiente quem contribui para que obtenham o comando, seja persuadindo o dono do navio ou exercendo violência sobre ele, mas ao que não é capaz disso censuram como imprestável”. O “dono do navio” na democracia é o povo. Para os ignaros movidos pela adulação, o verdadeiro piloto seria inútil.
Platão expõe algo insuportável para as almas democráticas. O certo, num Estado saudável, seria o povo pedir para ser governado, jamais o bom governante implorar o controle. O Estado moderno foi edificado pela burocracia. Nela, o saber técnico toma as decisões e disfarça o desprezo pelas urnas com o uso de propaganda e retórica. Um Parlamento ou rei, diz Max Weber, se tornam frágeis se burocratas não lhes fornecem dados sobre economia e administração. É o “segredo do cargo”. Para vencer semelhante “espírito coagulado” (ainda Weber), na passagem do século 19 para o 20 surgem as políticas do carisma, lideranças de um homem ou partido cuja missão é restaurar todas as coisas corrompidas. Chega a hora do jurista Carl Schmitt com o Führer, que, acima da burocracia, decide sobre o direito, o inimigo e a ditadura. Ele é soberano. Do outro lado, o filósofo G. Lukács exibe fé na revolução proletária internacional que destruiria o aparelho burocrático. À direita ou à esquerda, ambos justificaram tiranias. Hoje a máquina administrativa persiste. O mundo soube em data recente: funcionários detentores dos cargos e do segredo atenuaram iniciativas desastrosas do presidente Trump na política internacional. Mas o engenho da burocracia gera o salvador do povo e sua lisonja para obter, como em Atenas, o apoio do eleitor.
Doutrinas autoritárias ou totalitárias aproveitaram a crítica platônica, nela vendo uma senda para o líder e o partido único. Os ataques de Karl Popper (The Open Society) têm boas razões para recusar a advertência platônica. Mas notemos a demagogia no Estado democrático. Quem nega que as próximas eleições indicarão como vitorioso o político que mais cativar, com mentiras e lisonjas, o maior número de eleitores? Nas urnas, a resposta, não temo adiantar, será uma enorme reiteração do que denuncia o pensador perto de quem “toda a filosofia ocidental não passa de uma nota ao pé da página”. Os votos, na sua maioria, serão em prol do cozinheiro. O médico que se cuide.
*Roberto Romano é professor da Unicamp, Roberto Romano é autor de Razões de Estado e outros estados da razão (Perspectiva)