Só com o PIB crescendo bem mais voltará a haver condições de ascender socialmente
Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.
Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.
A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.
Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.
Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.
E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.
Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.
Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (…). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (…) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.
*Economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP, é Consultor Econômico e de Ensino Superior