É preocupante a ideologização da educação, para um viés como para outro
Quando criança, uma vez por semana eu e meus colegas de escola tínhamos de nos posicionar em fila e entoar em postura de respeito cívico o Hino Nacional brasileiro e, muitas vezes, o hino da escola. Vivíamos o tempo da ditadura militar e nenhum dos alunos ousaria questionar o porquê daquilo. Eu, particularmente, gostava de cantar os hinos.
Eis que quase 40 anos depois disto, precisamente 34 anos passados desde o processo de redemocratização, o ministro da Educação do governo eleito em outubro manda uma surpreendente carta às escolas do País determinando que todas as crianças cantem o Hino, sejam filmadas cantando, sob os auspícios de Deus acima de todos, reproduzindo-se o slogan de campanha do presidente da República a que serve.
Não é necessário ter doutorado em Direito para enxergar as derrapadas cometidas pelo nosso ministro da Educação, originário da Colômbia, nosso país-irmão no continente, que pode até ter tido boas intenções, mas elas são insuficientes para gerir essa tão complexa e importante pasta e as respectivas políticas públicas.
Não se revoluciona a educação no Brasil com a agenda de costumes. Exige-se ousadia para valorizar e capacitar os professores, além de rever métodos ultrapassados de ensino, coragem para lidar com um cenário em que estudantes abandonam a escola cedo demais (25% não terminam o ensino fundamental e 41% não concluem o ensino médio antes dos 19 anos).
No Brasil, mais de 50% não sabem ler nem escrever até os 9 anos e 7% não adquirem o conhecimento necessário em Matemática ao fim do ensino médio. Infelizmente, no ranking da qualidade da educação 2018, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, de 137 países avaliados, o Brasil ocupa a triste posição 119.
Portanto, o problema não se restringe a questões jurídicas, já que, obviamente, crianças não podem ser filmadas sem autorização dos pais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é só o desrespeito à Constituição, que desde 1891 proclama o Brasil um Estado laico, sendo inadmissível menoscabar os adeptos de quaisquer credos ou religiões, assim como os ateus ou agnósticos.
Deus acima de todos pode ser um chamariz de campanha política e uma opção religiosa individual, mas é ideia que não pode ser imposta aos ateus e agnósticos nem nortear a política pública da educação, já que aqueles que não creem têm o mesmo direito à educação que os que creem, mesmo que estes sejam maioria – numa democracia a vontade da maioria prevalece para a escolha do governante, que governa para todos.
É preocupante a ideologização da educação – tanto para um viés como para outro. Todos têm direito a ela, que transforma as pessoas, sendo inadmissível ser utilizada como instrumento para manipulação política, para formar massa de manobra eleitoral.
E neste ponto vale refletir sobre a necessidade de reinserção das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) na grade curricular escolar, que durante algum tempo cheguei a pensar ser algo razoável e positivo.
Não tenho dúvida da importância de se falar na escola sobre valores éticos, humanismo, cidadania, Estado e suas funções, direitos e deveres de cada um e cada uma. Mas tenho sérias dúvidas se a melhor forma é a reintrodução dessas matérias, porque nos tempos em que elas eram ensinadas os respectivos conteúdos eram impostos arbitrariamente pelo governo militar, que dava as cartas à época, o que nos autoriza a imaginar que poderemos correr riscos de ver conteúdos manipulados transmitidos nas aulas dessas disciplinas, distantes do verdadeiro, nobre e humanista espírito educativo apartidário.
A carta do ministro da Educação reforça e reaviva a preocupação, não obstante fazer ele parte de um governo eleito democraticamente. Também o foram Trump nos Estados Unidos, Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, objeto de análise dos professores de Ciência Política de Harvard Ziblatt e Levinsky, autores da festejada obra Como as Democracias Morrem, em que mostram como instituições democráticas podem ser dinamitadas pelo mau uso das próprias regras do jogo democrático e por posturas ditatoriais. Por minha conta acrescento o caso Hugo Chávez na Venezuela.
Nada contra o canto do Hino nas escolas, mas que se tenha clareza de que isso é muito raso e insignificante para a construção do sentimento patriótico, que diz respeito a uma nova cultura, que nunca tivemos verdadeiramente. Mudanças culturais são instituídas ao longo das gerações a partir de políticas públicas planejadas estrategicamente visando tal objetivo.
Construiremos patriotismo a partir do enfrentamento corajoso da crise de representatividade política, pelo resgate da confiança dos cidadãos em seus representantes, quando estes deixarem de exercer o poder visando a se autobeneficiar, como percebem os brasileiros (93% deles – Latinobarómetro 2018); quando forem apresentadas ações concretas de Estado no combate à corrupção, eliminando o foro privilegiado, aprovando uma reforma político-partidária de verdade, permitindo candidaturas avulsas, como fazem mais de 90% das nações do mundo.
Em vez de reintroduzir EMC e OSPB, talvez fosse melhor e menos arriscado transmitir as ideias essenciais inerentes à cidadania, à ética, ao humanismo, aos direitos e deveres, como já mencionei, de forma transversalizada, difusa, ao ensinar Geografia, História, Biologia ou Língua Portuguesa, com seminários, debates e exemplos sutis e inteligentes que façam o estudante refletir, sem demonizar alguns nem santificar outros, ensinando-o a desenvolver senso crítico, sem impor ao estudante verdades absolutas.
*DOUTOR EM DIREITO PELA USP, PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO, É IDEALIZADOR E PRESIDENTE DO INSTITUTO NÃO ACEITO CORRUPÇÃO