Cada vez mais isolado, sem apoio da sociedade, sem ideias para o Brasil e sem uma alternativa clara para oferecer à população nas próximas eleições, o lulopetismo não se constrange ao manifestar sua falta de apreço pela democracia e pela liberdade. A lamentável campanha levada a cabo por simpatizantes e mesmo alguns próceres do partido, que vieram a público para defender um boicote à série “O Mecanismo”, produzida e exibida pela Netflix no país, é um retrato perfeito da falência política e moral e do completo descompasso entre certos setores da esquerda e o mundo real.
Para quem ainda não teve a oportunidade de ver, trata-se de “uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais” – esclarecimento feito a todos os telespectadores antes mesmo do início do primeiro episódio. O diretor José Padilha, um dos mais consagrados profissionais do cinema brasileiro, deixa claro que “personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”. A história gira em torno dos bastidores de uma investigação claramente inspirada na Operação Lava Jato, o maior escândalo de corrupção da história do país e que simbolizou o desmantelo ético e moral dos governos petistas de Lula e Dilma Rousseff.
Se, por um lado, já tivemos bolsonaristas e entusiastas da extrema-direita pregando o fechamento de exposições de arte em museus, agora é a vez de a extrema-esquerda defender a censura de séries e filmes que não são do seu agrado. O que fazem tais lulopetistas exacerbados, que mais se assemelham a fundamentalistas religiosos, é tornar “O Mecanismo” um sucesso absoluto de audiência, talvez maior do que todos os filmes e séries já produzidos no Brasil.
Fico imaginando se, em meio a tamanha cegueira ideológica, os que hoje defendem a censura e o cancelamento de assinaturas da Netflix também seriam capazes de queimar livros que, porventura, criticassem os seus heróis bandidos. Por outro lado, é importante notar que a justa crítica aos intelectuais lulopetistas acaba açulando os bolsonaristas que, em seu fundamentalismo, são tão ou até mais obtusos na sanha antidemocrática e fascistoide. A verdade é que ambos os grupos se igualam, lamentavelmente, na antidemocracia.
Chama a atenção – gerando, inclusive, um sentimento de vergonha alheia –, a patética convocatória ao boicote feita inicialmente por um suposto crítico de televisão de uma das revistas mais alinhadas e cooptadas historicamente pelo lulopetismo. Trata-se, evidentemente, de uma estultice – como se um profissional especializado na crítica televisiva e de entretenimento pudesse simplesmente ignorar o fenômeno mundial do “streaming” simbolizado pela Netflix.
Também não se pode ignorar a intervenção estapafúrdia da presidente cassada por impeachment, que se notabiliza cada vez mais pela enorme dificuldade de articular um pensamento minimamente coerente, lógico e concatenado. Fica claro que, assim como não entendia de economia, política, gestão pública, liderança e inúmeros outros assuntos para os quais deveria ter dado atenção durante o seu fracassado governo, Dilma não consegue interpretar ou identificar o que são liberdades dramáticas próprias de uma obra de ficção meramente baseada em fatos reais.
Tal comportamento intolerante e antidemocrático, seja no caso da série na Netflix ou no episódio de triste memória da tentativa de censura prévia a exposições artísticas, mostra que lulopetistas e bolsonaristas não têm limites. O que se viu nesta semana no Sul do país, com agressões dos defensores de Lula a jornalistas que apenas realizavam o seu trabalho e, por outro lado, manifestações inaceitáveis de violência por parte dos admiradores de Bolsonaro contra a caravana liderada pelo ex-presidente, revela de forma cristalina que os dois extremos caminham inescapavelmente para um fascismo exacerbado.
Essa esquerda de que falamos com certa vergonha e um profundo pesar se assemelha cada vez mais à extrema-direita da qual tanto pretende se diferenciar. São grupos que tentam censurar a arte em suas diversas manifestações e, neste caso mais recente, boicotar filmes, séries e plataformas digitais que fazem parte do dia a dia do mundo moderno. É uma visão arcaica, anacrônica, reacionária e até mesmo fascista.
Quando afirmamos a necessidade de construirmos uma alternativa concreta que unifique o campo das forças democráticas para as eleições de outubro, é também em função disso. O Brasil não pode, de forma alguma, ficar refém de uma polarização entre os extremos, à direita e à esquerda, que atacam a cultura, a democracia e a própria liberdade. As diversas facetas do obscurantismo, que se retroalimentam e se confundem entre si, devem ser duramente combatidas no âmbito democrático. Nosso mecanismo é o voto.