Roberto Feith: Judiciário sob ameaça

A proposta de Bolsonaro de mudar a legislação para nomear dez novos ministro ao Supremo suscita o espectro de uma versão tupiniquim de populistas como Orbán e Erdogan.
Foto: Dorivan Marinho/STF
Foto: Dorivan Marinho/STF

A proposta de Bolsonaro de mudar a legislação para nomear dez novos ministro ao Supremo suscita o espectro de uma versão tupiniquim de populistas como Orbán e Erdogan

Um Judiciário independente, apartidário e comprometido com a aplicação impessoal da lei é alicerce da democracia. Este fundamento da sociedade pluralista está sob ataque em diversos pontos do planeta.

Na Europa do Leste, partidos populistas, que ascenderam ao poder através de eleições livres, vêm usando este poder para aprovar leis que limitam a atuação da imprensa, circunscrevem a produção acadêmica e transformam o Judiciário em instrumento de luta política. Na Hungria, o primeiro ministro Viktor Orbán, defensor do que ele chama, com alguma ironia, de “democracia iliberal”, promulgou ampla reforma constitucional com restrições à autonomia do Judiciário.

Na Polônia, Jaroslaw Kaczynski, líder do Partido da Lei e da Justiça, aprovou legislação que permite ao governo substituir juízes da mais alta corte do país. Em seguida, nomeou magistrados selecionados em função da lealdade ao seu partido. A medida provocou protestos no Parlamento Europeu e uma investigação da Comunidade Europeia. Kaczynksi tem ignorado solenemente os protestos de Bruxelas.

As tentativas de controlar o Judiciário não se limitam à Europa. O mesmo ocorre no Egito, nas Filipinas e na Turquia, onde o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan executou um expurgo do aparato de Estado, extensivo ao Judiciário, afastando todos que não estivessem alinhados com ele.

Michael Posner, diretor do Centro para Negócios e Direitos Humanos da New York University, aponta que “no passado, a supressão de liberdades democráticas e do Judiciário independente implicava no risco de sanções dos Estados Unidos. Hoje, temos um presidente americano que não apenas não critica estas restrições, mas parece endossar o comportamento antidemocrático.”

Este presidente acaba de nomear Brett Kavanaugh para substituir Anthony Kennedy, que vinha exercendo a função de fiel na balança na Suprema Corte americana. A mudança permitirá a Trump consolidar uma maioria conservadora na Corte.

Até pouco tempo, as qualificações do candidato eram o fator preponderante na aprovação de nomeações para a Suprema Corte pelo Congresso americano. Mas, em 2016, rompendo esta tradição, o Partido Republicano bloqueou a aprovação de Merrick Garland, nomeado por Barack Obama, apesar das suas eminentes qualificações. Hoje, o Partido Democrata está empenhado em bloquear o nomeado de Trump. Se consolida a perspectiva de uma Suprema Corte cindida, espelhando a crescente polarização da sociedade americana.

Polônia, Hungria, Turquia e, em menor grau, os Estados Unidos, têm em comum a extensão ao Judiciário da luta partidária sem quartel, que extrapola normas e tradições democráticas.

A politização do Judiciário além das nossas fronteiras inevitavelmente provoca a reflexão sobre a situação no Brasil. Algumas decisões dos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski no Supremo e a recente bizarra atuação do desembargador Rogerio Favreto no Paraná parecem introjetar elementos da disputa partidária no Judiciário. A proposta do candidato à Presidência Jair Bolsonaro de mudar a legislação para nomear dez novos ministro ao Supremo, por sua vez, suscita o espectro de uma versão tupiniquim de populistas como Orbán e Erdogan e suas tentativas de dominar o sistema legal.

A Justiça brasileira ainda não é um campo tomado pela disputa entre partidos. Ela tem sido, na maioria das vezes, garantidora da impessoalidade da lei. Mas o exemplo de outros países nos quais o Judiciário foi instrumentalizado para a ação política merece atenção. O momento que atravessamos demanda uma Justiça que não se submeta à pressão de lideranças políticas por uma interpretação da lei conforme as suas conveniências. Caso contrário, tal como acontece em outros países, a Justiça deixará de ser garantidora, para se tornar ameaça à democracia.

* Roberto Feith é jornalista

 

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