Uma crueldade para jamais ser esquecida
Cobra-se de Jair Bolsonaro, o ex-capitão afastado do Exército por indisciplina e conduta antiética, o que ele não tem para dar. Por exemplo: compostura e dignidade para o exercício do cargo de presidente da República, moderação para saber lidar com conflitos e a capacidade de compreender sentimentos e emoções dos outros.
Carente dessas e de outras qualidades que podem fazer de uma pessoa um ser humano melhor, Bolsonaro protagonizou, ontem, mais um episódio de vilania, estupidez e brutalidade que chocou até mesmo seus aliados políticos, calando pelo menos parte da manada de devotos que costuma defendê-lo nas redes sociais.
Ao queixar-se do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Fernando Santa Cruz, que impediu a Polícia Federal de ter acesso a dados confidenciais do advogado de defesa de Adélio Bispo, o esfaqueador de Juiz de Fora, Bolsonaro feriu um dos princípios do mundo civilizado de jamais se ofender a memória dos mortos.
Primeiro porque os mortos não podem se defender. Segundo porque sua descendência vive e não deve ser ofendia. Terceiro porque isso é uma coisa que não se faz e ponto. As religiões compartilham valores comuns como o perdão, a fé, a caridade e a paz. Batizado nas águas do Rio Jordão, Bolsonaro não passa de um religioso de araque.
Que seja levado às barras dos tribunais. A ninguém é dado revelar publicamente que sabe como um crime foi cometido e não se oferecer para depor. Ou não ser chamado a depor. Bolsonaro disse que sabe como o pai de Fernando Santa Cruz foi morto depois de preso por militares no Rio quando tinha 28 anos de idade.
A lei da anistia perdoou os autores de crimes de sangue, e também os que torturaram ou foram responsáveis pelo desaparecimento de corpos. Mas ela não aboliu o esquecimento nem o direito de se procurar saber o que aconteceu, e como aconteceu. É o que a família Santa Cruz tenta sem sucesso desde 1974.
Diante do estupor provocado pelo que disse, Bolsonaro sentiu-se forçado a dar explicações. Então fez mais uma de suas aparições ao vivo no Facebook, desta vez na cadeira de um cabelereiro que aparava suas madeixas, para garantir que o pai de Fernando Santa Cruz foi morto por seus companheiros de organização política.
No passado, ao defender a ditadura militar, seus assassinos e torturadores, Bolsonaro já havia dito que o pai de Santa Cruz deveria ter morrido embriagado em uma rua qualquer do Rio. Um documento secreto da Aeronáutica diz que ele foi morto por militares. Seu corpo, segundo uma testemunha, acabou incinerado.
À época, Marcelo, um irmão do morto, teve cassado o direito de estudar no Brasil. Rosalina, a irmã mais velha, foi presa, torturada à base de choques elétricos e sofreu um aborto provocado pela violência. Pontificava em São Paulo o coronel Brilhante Ulstra, um dos mais cruéis torturadores da ditadura que duraria 21 anos.
Sim, trata-se do mesmo coronel que Bolsonaro tanto faz questão de exaltar, autor de um livro cuja leitura ele recomenda a amigos e companheiros de ideias.
Nós contra ele
Em defesa do Estado de Direito
Os jornalistas, ou uma parte de nós, seremos cobrados no futuro ou desde já por termos aceito como verdade e subscrito tudo o que os procuradores da Lava Jato e o então juiz Sérgio Moro vazaram nos últimos anos de forma direta ou indireta; e também por termos tratado o presidente Jair Bolsonaro, depois de eleito, como um político que poderia ser, digamos assim, normalizado.
Os fatos descobertos mostram que a corrupção não só existia como ultrapassara limites inimagináveis. Nem por isso o que se alardeou a respeito foi só a verdade. Moro atuou como juiz e assistente de acusação, desprezando as leis. O combate à corrupção deve ser política de Estado, não de governo. Deve obedecer a regras conhecidas por todos. Não pode depender de líderes carismáticos.
No caso de Bolsonaro, acreditamos que uma vez empossado ele se comportaria como o presidente de todos os brasileiros. Que jogaria fora a máscara de homofóbico, misógino, preconceituoso, defensor de torturadores e da ditadura e que apresentaria uma nova face mais aceitável e menos impregnada de ódio. Erramos outra vez. Ele é o que sempre foi e continuará sendo.
Só nos resta pedir perdão e resistir ao autoritarismo que tenta se implantar e que mina os valores de uma democracia tão vulnerável a abusos como a que temos. De volta ao “nós contra eles”. Ou melhor: o “nós contra ele”. Com uma diferença: o “nós” deve reunir todos os que defendam com convicção e destemor o Estado de Direito, confrontado por práticas que ameaçam destruí-lo.
Onde andam os sensatos de farda
Mais um engodo
Para justificar o ingresso em massa de militares no governo, entre eles um general da ativa, vendeu-se a teoria de que, por sensatos, bem preparados e legalistas, eles saberiam controlar o capitão.
Foi um engodo. Ou eles compartilham das mesmas opiniões e ideias bizarras do capitão ou se renderam placidamente às vantagens dos cargos que ocupam. Ou às duas coisas, o que parece o mais provável.