Transferência de renda é mais eficiente que subsídio
As duas propostas de reforma tributária que já estão no Congresso – a relatada pelo ex-deputado Luiz Carlos Hauly e a elaborada pelo economista Bernard Appy – preveem mudança no tratamento tributário dispensado à cesta básica, que hoje é isenta de impostos. A ideia que consta nas duas propostas é trocar a atual desoneração tributária pela devolução do imposto pago pelos mais pobres na compra dos 16 produtos que constam da cesta, sendo 13 deles alimentos.
O Ministério da Economia ainda não fechou a sua proposta de reforma tributária. Mas há um entendimento na área econômica de que a atual desoneração da cesta é uma das distorções, entre muitas outras no âmbito dos subsídios concedidos pela União, que precisam ser corrigidas.
Um estudo feito, em novembro de 2018, pela então Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria do Ministério da Fazenda sugeriu a substituição dos subsídios por políticas de transferência direta de renda, como um caminho mais eficiente para reduzir a pobreza e melhorar as condições de vida da população mais pobre. Como fazer isso, no entanto, ainda não está definido. Criar um sistema de devolução do imposto pago, como sugerido pelas outras duas propostas em tramitação no Congresso, ou simplesmente aumentar os valores do programa Bolsa Família?
Nas propostas de Hauly e Appy, lei complementar vai definir os critérios e a forma pela qual será feita a devolução dos tributos aos pobres. Em conversa com o Valor, Appy disse que uma forma de promover a devolução do tributo seria fazer o cruzamento do CPF declarado no momento da aquisição dos produtos com o cadastro único dos programas sociais. Esse cadastro abrange 73 milhões de pessoas, universo maior do que as cerca de 40 milhões beneficiadas pelo programa Bolsa Família. Haveria, é claro, um valor limite para a devolução.
O auditor fiscal da Receita Estadual do Rio Grande do Sul e doutor em economia Giovanni Padilha da Silva, um dos primeiros estudiosos brasileiros a abordar o tema, chamou a atenção para dois aspectos, em conversa com o Valor. Se a devolução for feita por meio de um sistema que obrigue o registro do CPF do consumidor, haverá uma substancial redução da sonegação fiscal, disse. “Haverá um estímulo à formalização.” Em segundo lugar, Padilha observou que a devolução não deve ser vista como um complemento ao Bolsa Família. “Na verdade, é a devolução de uma parcela do imposto que o consumidor pobre já pagou. Ou seja, é uma forma de ajustar a carga tributária à sua capacidade contributiva.”
Há tempos, os especialistas mostram que a tributação sobre o consumo no Brasil é altamente regressiva. Ou seja, os mais pobres pagam mais tributos indiretos, em proporção da renda. Dito de uma forma direta: os tributos sobre alimentação oneram mais os pobres.
Foi com base nessa constatação que os governos reduziram, ao longo do tempo, a tributação sobre os bens de consumo populares. Os governos estaduais diminuíram o ICMS para algumas mercadorias da cesta básica e governo federal eliminou o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a Cofins/PIS, desoneração concluída em 2013.
A estimativa mais recente feita pelo governo é de um gasto de cerca de R$ 18 bilhões com a política de desoneração da cesta básica neste ano. Em termos de comparação, o Orçamento de 2019 prevê uma despesa de R$ 29,5 bilhões com o pagamento dos benefícios do Bolsa Família. A questão é saber se a desoneração da cesta está cumprindo o seu objetivo. O estudo do governo indica que não.
Em 2017, o então Ministério da Fazenda realizou uma análise comparativa da eficiência da desoneração da cesta básica vis-a-vis ao Bolsa Família. Constatou-se que, para um gasto orçamentário de R$ 28 bilhões em 2016, as despesas com o programa resultaram em redução de 1,7% da desigualdade de renda.
Em contrapartida, a Fazenda estimou que o gasto de R$ 18 bilhões com a desoneração da cesta básica reduziu apenas 0,1% na desigualdade de renda. A conclusão foi de que o Bolsa Família é, aproximadamente, 12 vezes mais eficiente do que a desoneração da cesta básica para reduzir a desigualdade.
Há duas razões principais para isso, de acordo com o estudo. A primeira é que o repasse da desoneração tributária ao preço, ainda que parcial, “beneficia os produtores via aumento da margem de lucro, os quais, em geral, estão nas parcelas de mais alta renda da sociedade”. Depois, as pessoas de renda mais alta também consomem os mesmos produtos que foram desonerados.
A legislação prevê desoneração dos tributos federais (IPI e PIS/Cofins) que incidem sobre carnes bovina, suína, ovina, caprina, de aves e peixes em geral. Não importa que a pessoa esteja comprando um quilo de picanha ou de acém. Não importa que esteja adquirindo um quilo de salmão ou de sardinha. A isenção é a mesma. A mesma sistemática é aplicada a manteiga, leite, óleo, café, feijão, arroz, açúcar, farinha de trigo ou massa, pão, batata, legumes, frutas, papel higiênico, pasta de dente e sabonete.
Em resumo, a desoneração da cesta básica, como está estabelecida atualmente, reduz a carga tributária incidente sobre a população de baixa renda, mas também diminui a carga tributária dos estratos de renda mais alta da população. O efeito na redução desigualdade é, portanto, muito pequeno.
Há, também, estudos internacionais sobre essa questão. Analisando os subsídios e os programas de transferências de renda em países do Oriente Médio e norte da África, o Fundo Monetário Internacional (FMI) constatou que somente 35% dos gastos com subsídios atingem os 40% da população de renda mais baixa.
Um dos equívocos da política de desoneração da cesta básica é que ela não diferencia subjetivamente os consumidores, como explicou Giovanni Padilha. O importante, segundo ele, é melhorar a focalização da política, beneficiando efetivamente as populações mais pobres. Para ele, isso agora é possível com a criação do cadastro único de beneficiários de programas sociais e o uso do CPF.