Já se disse quase tudo de Machado de Assis, avalia Ruy Fabiano. Para ele, pouco, no entanto, se mencionou sobre o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges
A respeito de Machado de Assis já se disse quase tudo. Quase. Sua gigantesca fortuna crítica, que não para de crescer, é marcada por antagonismos. A controvérsia, que em vida lhe causava tédio, o enriquece e o torna ainda mais esfíngico perante a posteridade.
Como todo artista de gênio, Machado é um ser poliédrico, que pode ser lido e compreendido sob ângulos diversos, que aparentemente se contradizem, mas, ao final, formam uma unidade. Já se falou das influências francesas, inglesas, portuguesas, alemãs, espanholas, greco-romanas e judaicas na obra de Machado de Assis.
Já se falou do Machado cético, ateu, irônico, humorista; Machado apolítico e, inversamente, político; Machado alienado, habitante de uma torre de marfim ou, muito pelo contrário, engajado a seu modo nas questões políticas e sociais do Segundo Reinado, como constatou o crítico e ensaísta Astrojildo Pereira.
Poucos, no entanto, mencionaram (ou mesmo perceberam) o Machado vítima de plágio. Não um plágio qualquer, mas um cometido por outro gênio da literatura – ninguém menos que o argentino Jorge Luís Borges. Tudo começa no capítulo VI, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, o Delírio, que Eça de Queiroz recitava de cor e proclamava antológico. Nele, Brás descreve sua própria alucinação.
Não bastasse a circunstância singular dessa descrição – já que o delírio interrompe a razão, ao passo que o relato literário é um exercício que exige razão –, seu conteúdo é ainda mais espantoso. E esotérico. Brás, depois de se constatar transformado na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, vê-se arrebatado por um hipopótamo, que o informa que irão “à origem dos séculos”. E o conduz ao alto de uma montanha, de onde, de certo ponto específico, vê passar por seus olhos, como “coisa única” uma redução dos séculos, “um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas”.
Faz aí menção a um lugar do Universo em que a história humana – toda ela – estaria armazenada: passado e futuro, unificados num presente contínuo. Para descrever esse desfile dos séculos em turbilhão – diz Machado – seria preciso uma impossibilidade física: “fixar o relâmpago”.
Vejamos agora Borges.
O conto chama-se “O Aleph”, talvez o mais festejado de seu magnífico acervo. Na história de Brás Cubas, a perda de uma mulher, Virgília, que o troca por outro, o leva àquele estado delirante.
Em Borges, também uma perda feminina, a morte de Beatriz Viterbo, o leva a encontrar o Aleph, que, na definição do homem que dele lhe dá notícia, um poeta medíocre, que julga louco, chamado Carlos Argentino, é “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos”. A mesma ideia de Machado, o mesmo fundamento esotérico.
Para contemplar o Aleph, o observador, em vez de subir ao topo de uma montanha (como Brás), deita-se ao rés do chão, no porão de uma casa em ruínas, prestes a ser demolida, e fixa o olhar numa escada velha. Muda o cenário em que cada personagem se instala, mas não o essencial, o que vê.
O personagem de Borges fixa o olhar na parte inferior do degrau, à direita, e percebe uma pequena esfera furta-cor, o Aleph. A partir daí, o que descreve é uma variante do delírio machadiano.
Diz ele:
“Naquele instante gigantesco, vi milhões de atos deleitáveis ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo (…). ”
E descreve cenas análogas às de Brás Cubas: o desfile dos séculos, dos impérios, cenas locais de sua cidade, de seu bairro, de seu quarto, mescladas a cenas de outras civilizações e de outras eras, coisas que não entendia, coisas que reconhecia. O Todo em simultaneidade; o relâmpago fixo. A Memória Universal em desfile.
Em um e noutro – em Machado e em Borges –, o tom quase bíblico do relato, à maneira do Apocalipse de São João, igualmente arrebatado, na Ilha de Patmos, por visões místicas, que um psiquiatra não hesitaria em diagnosticar como “alucinações”.
Mas o que é uma alucinação: algo que se vê e não existe ou algo que existe, mas só se vê em estados especiais de consciência, como aqueles que Dostoiévski atribuía às pessoas acometidas de patologias mais graves? Em síntese, é uma ilusão ou uma instância da realidade, acessível e acessável apenas em momentos especiais?
Tais questionamentos permeiam tanto o relato de Machado como o de Borges. Mas há ainda outras coincidências: os personagens Brás e Carlos Argentino evocam seus respectivos países: Brás, de Brasil, e Argentino, de Argentina; e há ainda a semelhança dos nomes Virgília e Viterbo. Atos falhos?
Provavelmente, sim, o que não macula ou diminui a obra de Borges, que é indiscutivelmente original e grandiosa.
Mas, por óbvias razões cronológicas, Borges leu Machado, e Machado não leu Borges. Machado morreu em 1908, quando Borges tinha nove anos. Susan Sontag, no ensaio Vidas Póstumas – O Caso de Machado de Assis, se engana, ao afirmar que Memórias Póstumas só foi traduzido para o espanhol em 1960.
A obra de Machado começou a ser traduzida para o espanhol exatamente em Buenos Aires, a partir de 1940, quando Borges estava em plena atividade, não só como escritor, mas também como crítico literário e ensaísta. E o primeiro livro de Machado em castelhano foi, muito a propósito, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Carlos Fuentes, no ensaio Machado de La Mancha (Editora Fondo de Cultura, México, 2001), captou essas “coincidências” e registra que o próprio Borges, posto diante delas, as reconheceu, declarando: “Por incrível que pareça, acredito que exista (ou tenha existido) outro Aleph” – a que Fuentes acrescenta: “De fato: o de Machado de Assis”.
Maria Esther Vasquez, colaboradora e amiga de Borges por décadas, informou, em entrevista à Folha de S. Paulo, em 1999, por ocasião do lançamento da biografia Borges, Esplendor e Derrota, de sua autoria, que “havia dois escritores de língua portuguesa que ele (Borges) amava: Camões e Machado de Assis”. Borges, porém, nas numerosas entrevistas que concedeu ao longo de sua vida, jamais fez referências a Machado de Assis.
O escritor brasileiro que ele mencionava com frequência era Euclides da Cunha, mais especificamente, seu épico Os Sertões, que considerava obra-prima universal. Citava também dois outros autores de língua portuguesa, Eça de Queiroz e Camões. Ninguém mais.
É possível que tenha omitido Machado de Assis exatamente para não trair a influência. Euclides da Cunha, estilisticamente falando, nada tem a ver com Borges. Nem muito menos Eça ou Camões. Já Machado tem – e muito. Possuem afinidades de concisão, elegância, ironia e erudição, destilada com critério e precisão, em frequentes citações. Os dois tinham ainda em comum o amor à literatura inglesa. Shakespeare os unia.
E mais: foram ambos leitores de Schopenhauer e mesclaram a visão pessimista daquele filósofo à busca aflitiva de transcendência em seus escritos. Ambos se proclamavam sem religião, mas não sem espiritualidade. A busca do conhecimento, em qualquer nível que se dê, vinculada ou não a uma doutrina específica ou a uma crença religiosa, conduz à religação buscada pelos místicos.
Constitui, pois, ato religioso por excelência – que tanto Machado como Borges souberam cultivar, com genialidade.