Parlamentares reclamam de demora para realização de audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados
Cleomar Almeida
Deputados brasileiros tentam montar o nebuloso quebra-cabeça para esclarecer os termos e as implicações do acordo entre o Brasil e o Paraguai sobre a compra e venda de energia produzida pela usina hidrelétrica de Itaipu. A ata do documento foi assinada em maio, sob sigilo, e cancelada no mês passado, logo após o caso ser revelado pelo jornal ABC, do país vizinho, e ter colocado em risco de impeachment o presidente Mario Abdo Benítez.
A ata bilateral assinada em maio definia os termos de compra de energia pelo Paraguai até 2022, estabelecendo, pela primeira vez, a operação comercial com antecedência. Até então, a contratação era feita a cada ano. Pela nova operação, o Paraguai passaria a pagar ao menos cerca de US$ 200 milhões a mais por ano pela mesma energia. Essa conta pesaria no bolso da população paraguaia, que não foi consultada sobre o acordo, que virou um escândalo.
Há suspeitas de que o acordo beneficiaria a empresa brasileira Léros, supostamente ligada a aliados do presidente Jair Bolsonaro. Ela comercializa energia e teria feito negociações com o Paraguai, pela energia de Itaipu, em nome do governo brasileiro. Executivos da Léros realizaram pelo menos duas viagens ao Paraguai em aviões privados, em abril e junho deste ano, com a presença do empresário Alexandre Luiz Giordano, suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP), líder do governo.
O caso tem gerado uma guerra de forças na Câmara dos Deputados. A Comissão de Relações Exteriores aprovou, em 13 de agosto, requerimento do deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR) para que os ministros Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior (Minas e Energia), participem de audiência pública para prestarem informações. No entanto, ainda não há data definida para a realização da audiência, já que o principal obstáculo é o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que ocupa a Presidência da comissão.
“Causa preocupação o fato de envolver um suplente de senador da República que tem empresa e ligação direta com o presidente [Jair Bolsonaro]. Trata-se de um caso nebuloso, que já provocou uma crise internacional e que precisa ser totalmente esclarecido. A falta de transparência sobre o acordo e a suspeita de tráfico de influência para beneficiar uma empresa brasileira ainda carecem de explicações mais detalhadas por parte do governo brasileiro”, afirma Rubens Bueno.
Em julho, o diretor da Léros, Kleber Ferreira, assinou proposta para comprar energia da Ande (Administração Nacional de Energia), a estatal paraguaia do setor. As negociações sigilosas visavam permitir que o Paraguai vendesse parte de sua energia ao mercado livre, beneficiando a empresa. Neste caso, a prática iria violar acordo original, de 1973, segundo o qual a energia produzida na usina poderia ser comprada só por estatais do setor de cada um dos países.
Para mudar essa regra, seria necessária a autorização dos Parlamentos brasileiro e paraguaio. Em julho, antes de a nova cláusula ser retirada do acordo e o caso vir à tona, o então presidente da Ande, Pedro Ferreira, alertou o presidente paraguaio. “Queria lhe mostrar os números e nossa análise. A prova de que o acordo é claramente inconveniente é que querem que o mantenhamos secreto”, afirmou, para questionar: “por que os que assinaram e viram a ata não saem a defendê-la publicamente?”.
Pedro Ferreira não assinou a ata e pediu demissão no dia 24 de julho. O substituto dele, Alcides Jiménez, ficou cinco dias no cargo. Em meio à crise, renunciaram aos cargos o embaixador do Paraguai no Brasil, Hugo Saguier, e o ministro de Relações Exteriores, Luis Alberto Castiglioni, assim como o titular paraguaio da usina hidrelétrica binacional de Itaipu, José Roberto Alderete.
Numa tentativa de buscar informações sobre o caso, deputados brasileiros da oposição têm dialogado com parlamentares paraguaios para descobrir as reais motivações do acordo e em que medida terceiros poderiam ser beneficiados por ele. No Brasil, além de Rubens Bueno, os deputados Carlos Zarattini (PT) e Arlindo Chinaglia (PT) têm cobrado transparência do governo em relação ao episódio. No entanto, o Planalto não se manifestou mais sobre o assunto.
“O presidente da Comissão de Relações Exteriores é Eduardo Bolsonaro. Imagine o interesse dele em explicar isso. Ele quer evitar a investigação até porque não se sabe até que ponto o PSL está envolvido nessa história, ou não. O camarada que foi fazer a mudança da cláusula [do acordo] é o suplente do Major Olímpio. A gente ainda não sabe o tamanho do envolvimento deles nesse processo”, disse Zarattini.
Giordano teria levado os sócios da Léros à reunião com representantes paraguaios da usina e indicados por ele como os beneficiários do acordo comercial entre os dois países, como revelou uma série de reportagens publicadas no jornal ABC, produzidas pela repórter Mabel Rehnfeldt. As matérias mostram conversas via whatsapp de autoridades paraguaias, que falam em negócios privilegiados para a Léros por indicação de Giordano e citam a família Bolsonaro por trás dos atos que indicam a Léros.
As reportagens revelam que um envelope enviado pelo correio por representantes da estatal paraguaia tinha o nome de Giordano como destinatário. No endereço – Avenida General Ataliba Leonel, número 1205, Bairro de Santana, São Paulo – funciona a sala da empresa do suplente de senador e também o diretório do PSL, conforme divulgado pela imprensa. Outro endereço da empresa de Giordano – na mesma avenida, mas no número 1223, 6º andar – também é usado pelo PSL, como atesta intimação da Comissão de Ética do partido à líder do governo, Joice Hasselmann, em junho de 2018.
“Esclarecer os fatos é dever do próprio governo Bolsonaro, que acusa a velha política de corrupção, mas que se vê envolvido em diversas suspeitas. Além disso, o que também tem que ser esclarecido é a morosidade para a realização da audiência pública na Comissão de Relações Exteriores”, critica Rubens Bueno.
Cronologia
Veja os principais fatos envolvendo pivôs do acordo entre Brasil e Paraguai
» 6/4/ 2018: Alexandre Giordano se filia ao PSL
» 7/4/ 2018: Encerra o prazo de filiações para a eleição
» 16/4/2018: Junta Comercial de SP aponta a saída de Giordano da empresa Enfermade. No mesmo dia, o filho de Giordano, Lucca (17 anos), aparece como único sócio
» 3/10/2018: Sócios do Grupo Léros abrem uma offshore no paraíso fiscal do Panamá
» 7/10/2018: O major Olímpio é eleito senador por SP, e Giordano fica com a suplência
» 28/10/2018: Jair Bolsonaro (PSL) ganha a eleição presidencial
» 12/3/2019: Bolsonaro se encontra com o presidente paraguaio Mario Abdo Benítez para discutirem a revisão do acordo bilateral. O Brasil pressiona para que a cláusula que impede a venda de
energia para uma empresa privada brasileira a preço de custo seja retirada. O objetivo é que a empresa depois possa revender a energia a preço de mercado no Brasil
» 9/4/2019: Em voo privado, Giordano chega ao Paraguai acompanhado de Adriano Tadeu Deguirmendijian, sócio da Léros, e mais duas pessoas
» 10/5/2019: Duas semanas antes da assinatura do acordo bilateral, Giordano se encontra na Tríplice Fronteira com Pedro Ferreira, então presidente da Ande, e com Joselo Rodriguez, assessor jurídico do vice-presidente Hugo Velásquez
» 24/5/2019: Acordo bilateral é assinado pelos dois presidentes
» 25/5/2019: Nova viagem, em voo fretado, de Alexandre Giordano junto a Adriano Tadeu Deguirmendijan, da Léros, para encontrar os representantes paraguaios
» 24/7/2019: Pedro Ferreira, presidente da Ande, renuncia por discordar dos termos e se recusar a assinar o acordo
» 27/7/2019: O Grupo Léros oficializa em documento proposta de compra de energia ao governo paraguaio
» 29/7/2019: Outras autoridades paraguaias ligadas ao caso Itaipu renunciam
» 31/7/2019: Partidos de oposição anunciam o pedido de impeachment do presidente paraguaio
» 1º/8/2019: Para escapar do impeachment, o presidente do Paraguai anula o acordo. Contrariando o que deveria se esperar do chefe de Estado brasileiro diante de decisão unilateral prejudicial ao país, Bolsonaro aceita a anulação e diz que buscará nova saída
Fonte: Sportlight
Brasil e Paraguai devem revisar acordo original em 2023
Todo o acordo que trata da comercialização da energia gerada pela usina hidrelétrica de Itaipu deve ser revisto em 2023, 50 anos depois de Brasil e Paraguai terem firmado o primeiro acordo para a geração de energia e quando o empreendimento deverá ser plenamente quitado. Na prática, cada cláusula deverá ser revista, desde que sejam respeitadas as regras e obedecida a transparência.
No total, em 2018, segundo os dados mais recentes, o mercado brasileiro consumiu 14,6% da energia gerada, ao passo que a demanda paraguaia alcançou 90,7%.
A capacidade instalada da usina é de 14 mil MW. Pelo contrato atual, o Brasil tem direito à metade da energia gerada pela usina, e o Paraguai, aos outros 50%. De acordo com dados da própria Itaipu Binacional, a construção da usina custou US$ 17,6 bilhões.
O acordo atual estipula que, caso não use toda a energia a que tem direito, o Paraguai é obrigado a vendê-la para o Brasil. Além disso, os dois países juntos também precisam contratar toda a energia produzida, ou seja, devem pagar por 100% da energia gerada.
O deputado federal Rubens Bueno afirma que a usina hidrelétrica de Itaipu é parte estruturante das relações bilaterais entre Brasil e Paraguai. Segundo ele, o empreendimento desempenha importância estratégica nas economias de ambos os países, seja como fonte de recursos, da parte paraguaia, seja como uma das principais fontes de eletricidade para o Brasil.
“Por esse motivo, qualquer tipo de revisão nos termos do ajuste entre os dois países suscita profundo debate nas sociedades de ambos os países. Neste caso recente, isso não aconteceu”, alerta Rubens Bueno.
Diante das suspeitas em torno do acordo que se frustrou por causa da repercussão internacional, os parlamentares dizem que estão mais atentos para cobrar explicações do governo. Segundo Carlos Zarattini (PT-SP), o caso não pode cair no esquecimento e a sociedade deve estar atenta para fiscalizar os atos do governo.
“Não podemos ser levianos e acusar o governo de corrupção, mas são suspeitas baseadas em elementos concretos. Nós temos que ficar atentos o tempo todo”, destaca Carlos Zarattini.
O Palácio do Planalto e o presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, não se manifestaram. A reportagem não conseguiu contato com os deputados paraguaios.