Revista Política Democrática || Entrevista Especial – Antonio Risério: “A gente vive em uma sociedade bipolar”

Para o poeta e historiador Antonio Risério, o Brasil será modificado realmente quando os brasileiros aprenderem a dizer "nós fizemos isso" e pararem de falar na terceira pessoa: “Eles mataram os índios”, “Eles oprimem as mulheres”, “Eles são os culpados de tudo”, afirma.
Foto: Flip
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Para o poeta e historiador Antonio Risério, o Brasil será modificado realmente quando os brasileiros aprenderem a dizer “nós fizemos isso” e pararem de falar na terceira pessoa: “Eles mataram os índios”, “Eles oprimem as mulheres”, “Eles são os culpados de tudo”, afirma

Por Caetano Araujo, com a colaboração de Ivan Alves Filho

Antropólogo, poeta, ensaísta e historiador brasileiro, Antonio Risério é o entrevistado especial da 13ª edição da Revista Política Democrática Online. Ele acredita que, hoje, muita gente do campo democrático anda preocupada em superar a atual polarização brasileira e encontrar um rumo para o País. “Eu me coloco claramente no campo da esquerda democrática e não tenho nenhum problema com isso. O que acho houve no país foi o seguinte. Ao se tornar independente e conquistar autonomia nacional, o Brasil teve de construir a imagem do que somos”, diz Risério.

Antonio Risério nasceu na Bahia, em 1953. Fez política estudantil em 1968 e mergulhou na viagem da contracultura. Implantou a televisão educativa, as fundações Gregório de Mattos e Ondazul e o hospital Sarah Kubitschek, na Bahia. Fez o projeto para a implantação do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.Tem feito roteiros de cinema e televisão. Diversas composições suas foram gravadas por estrelas da música popular brasileira. Integrou os núcleos de estratégia e criação das duas campanhas de Lula à presidência da República.

Escreveu, entre outros, os livros Carnaval Ijexá (Corrupio, 1981), Caymmi: Uma Utopia de Lugar (Perspectiva, 1993), Textos e Tribos (Imago, 1993), Avant-Garde na Bahia (Instituto Pietro Bardi e Lina Bo, 1995), Oriki Orixá (Perspectiva, 1996), Ensaio sobre o Texto Poético em Contexto Digital (Fundação Casa de Jorge Amado, 1998) e Uma História da Cidade da Bahia (Versal, 2004).

O poeta e historiador aponta, ainda, que o Brasil tem, atualmente, a necessidade de repensar a sociedade e reinventar a nação. “Está faltando, portando, uma releitura crítica da sociedade que se torna brasileira. A gente não pode ficar fazendo como esses filmes Carlota Joaquina, como o desfile da Mangueira, que é totalmente dominado por essa nova ideologia dominante da história do país entre ricos e pobres”, alerta.

Na entrevista especial concedida a Caetano Araujo, com a colaboração de Ivan Alves Filho, Antonio Risério destaca temas como a esquerda democrática brasileira, a história oficial brasileira e organização intelectual e ideológica da sociedade brasileira, entre outros.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Revista Política Democrática Online (RPD): O senhor acredita que o povo brasileiro ainda não superou sua baixa autoestima, padecendo do chamado complexo de vira-lata? 
Antonio Risério (AR): Pois eu acho o contrário. A gente vive em uma sociedade bipolar; vamos de um extremo a outro, da euforia à depressão (inint) [00:01:25]. Tem hora que nos vemos como os melhores do mundo; tem hora que o povo acha que o Brasil vai fazer merda. É uma certa dose de masoquismo nacional e, ao mesmo tempo, uma tentativa de fugir da responsabilidade. É muito comum as pessoas falarem no Brasil na terceira pessoa: “Eles mataram os índios”, “Eles oprimem as mulheres”, “Eles são os culpados de tudo”, mas nós não. A gente só vai modificar esse país quando aprender a dizer: “Nós fizemos isso”.

RPD: Por que razão a esquerda, se é que o senhor ainda se vale desse termo, perdeu de vista a ideia de que somos uma nação, com suas conquistas e também suas falhas, naturalmente? 
AR: Eu me coloco claramente no campo da esquerda democrática e não tenho nenhum problema com isso. O que acho houve no país foi o seguinte. Ao se tornar independente e conquistar autonomia nacional, o Brasil teve de construir a imagem do que somos. Daí a criação do Instituto Histórico Geográfico (IGH) e o trabalho pioneiro de Varnhagen, historiador francês, que nos descreveu em termos geográficos – cidades, rios, montanhas, Pico da Neblina etc – e, em termos históricos, o que éramos como personalidades e que feitos memoráveis definiam nossa identidade. Durante uns cem anos ou um pouco mais, o Instituto concentrou o estudo da história do Brasil.

Só muito recentemente é que vão surgir outros pólos de aspecto historiográfico, que irão proceder a uma releitura da visão tradicional cultivada do Brasil, que, na verdade, era uma celebração da colonização portuguesa e dos trópicos. Mas, em vez de reexaminar a experiência nacional brasileira, ela vai simplesmente inverter o sinal algébrico da velha história oficial e introduz a visão maniqueísta, de que a classe dominante é o mal e as classes dominadas, o bem. A classe dirigente vira alvo de ataque e, ao mesmo tempo, a classe dominada e as classes populares, objeto de celebração.

O que acontece, então? Passa-se a ter três figuras na nova história oficial do Brasil: o negro libertário, o índio ecofeliz e o português genocida. Cria-se uma mitificação do português genocida, considerando que a invasão portuguesa na Bahia é a quarta invasão que a gente tem documentada, bem como do índio libertário e do índio ecofeliz, já que a sociedade Tupinambá, por exemplo, era uma máquina de guerra implacável, que destruía outras sociedades indígenas, tomava suas, como tomou na Bahia. Não esquecer que os negros, identificados como libertários, nunca lutaram contra o sistema escravista enquanto sistema: lutaram contra a escravização de seus próprios grupos, mas aprendiam a escravizar os negros. Em resumo: ao se tentar reexaminar em profundidade a experiência, substituíram-se mentiras antigas por mentiras novas, na base de que “eles fizeram tudo” e “nós não fizemos nada”, isto é, os culpados são os outros, o culpado é o homem branco opressor.

RPD: Como poderíamos retomar o projeto Brasil como missão, tão caro à nossa intelectualidade desde a Conjuração Mineira? 
AR: Eu não sou tão fã da Conjuração Mineira. Aquilo foi uma rebelião senhorial, basicamente, a elite mineira querendo se livrar da exploração financeira do poder lisboeta. Daí todas as revoltas federalistas. Mas, para mim, revoluções separatistas são, por exemplo, a dos alfaiates na Bahia, que combina a luta contra o sistema escravista e contra a dominação colonial; são os alfaiates mulatos da Bahia que vão colocar isso.

Está faltando, portando, uma releitura crítica da sociedade que se torna brasileira. A gente não pode ficar fazendo como esses filmes Carlota Joaquina, como o desfile da Mangueira, que é totalmente dominado por essa nova ideologia dominante da história do país entre ricos e pobres. A maior contradição é celebrar os pretos e não o treze de maio, por um motivo muito simples: os negros eram escravistas, e o treze de maio é o dia que em que a gente oficializa. Assistindo a Carlota Joaquina e ao desfile da Mangueira, suprime-se a responsabilidade do Brasil. Não pode, é um absurdo dizer que não temos nada a ver com isso: “Eles fizeram isso”, fomos nós que fizemos. Como podemos assumir a grandeza nacional brasileira, dessa maneira? Ao longo de quinhentos anos de história, nós fizemos pelo menos duas grandes coisas: construímos um povo e uma nação. Eu não vou entregar isso.

RPD: O senhor acha que essa visão do eles dificulta uma organização intelectual e ideológica da sociedade brasileira? 
AR: Sim, totalmente. Marco Aurélio Nogueira resumiu muito bem essa questão, ao dizer em artigo recente: “É isso que está bloqueando mentalmente os democratas que ainda não se acham em condições sequer de defender seu legado”. É que tem coisas que a gente conquistou, o movimento abolicionista é uma pista central nisso. Entre os principais líderes do movimento abolicionista, havia três eram negros: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Deram-se as mãos e acabaram com a escravidão. E tem gente que querer fazer charme com o movimento negro, ao dizer: “Aquilo foi um autógrafo da Princesa Isabel”, não foi isso. Aliás, o primeiro ato que visou realmente ao fim da escravidão no Brasil foi protagonizado pelas Forças Armadas, quando, depois de dominar o Paraguai, o Conde d’Eu, marido da Princesa Isabel e comandante das tropas brasileiras, decidiu abolir a escravidão no país vizinho. Por aqui, ainda não se podia agir assim, teria virado uma guerra civil barra pesada no país. Joaquim Nabuco fala isso muito bem, ao comentar que as lideranças nacionais conseguiram contornar o risco de uma guerra racial. A abolição só ocorreu ao cabo de vários acordos entre as elites brasileiras, envolvendo decisões do tipo reforma agrária, de tal forma que, até hoje, o treze de maio não é feriado, é o dia do zootecnista. Jogou-se nossa história na lata de lixo. E isso impede de fato a celebração e a defesa claras do legado da conquista democrática.

RPD: Segundo o senhor, construiu-se visão um pouco depreciativa de nossa história e de nossa identidade. O senhor você vê alguma relação entre esse movimento e o movimento oposto, que também foi muito frequente em nossa história, de exaltação ufanista de nossa história e de nossa identidade, tanto uma quanto outra postura presente desde o século dezenove? Existiria alguma relação necessária entre ambas ou se seria algo como um pêndulo, que vai certas vezes para um lado e, certas vezes, para o outro? 
AR: A gente tem de fato oscilado nessas coisas. Celebra a colonização portuguesa, condena a colonização portuguesa; celebra os índios, condena os índios; é o tempo inteiro nesse negócio inútil, fruto de uma ignorância generalizada sobre a história do país. A gente não conhece a história brasileira. É preciso conhecê-la para examiná-la. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa do povo brasileiro. Mas, de resto, a gente acha que “Não, nós estamos fazendo a história. É o que a esquerda fica falando. É uma história populista, em que o porteiro do seu prédio é tão importante quanto os moradores. Tudo bem, temos de conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio, mas não foi ele que deu origem à história do país. Temos de ler a história do Brasil antropologicamente caso a caso, porque não é tão simples assim. Você vê, por exemplo, que muitos fazem isso, de uma ponta a outra do país, não existe um só orixá, não existe nenhuma empresa africana. O africano foi espiritualmente assassinado nos Estados Unidos. Mas, no Brasil, no país inteiro, você ouve falar de Iemanjá, nas comemorações do ano novo. O que houve aí? São processos, são realidades, são experiências nacionais distintas que a gente tem de conhecer, a gente tem de ter a coragem de reconhecer tudo que há de abominável, mas também a coragem de lembrar nossas conquistas. A gente vai entrar em parafuso vermelho, porque essa grandeza nacional é conquista nacional celebrada pela direita, que se veste de verde e amarelo. Eu também quero me vestir de verde e amarelo.

PRD: O senhor fala em revisão crítica, mas, ao mesmo tempo, em conhecimento da história, grande déficit da sociedade brasileira. A reinvenção da nação começa pelo conhecimento da história e com o que a gente poderá terminar com a polarização, a bipolaridade da sociedade brasileira? 
AR: Acho que ninguém tem de passar apenas pelo conhecimento, porque não adianta. Pega um livro do Francisco Bosco, um filósofo, que fala das mulheres negras que lutaram contra a dominação masculina no período colonial, mas não tem nenhuma informação segura sobre isso. Eu não conheço nada disso; conheço outra coisa. Temos uma história das mulheres da classe dirigente do Brasil que é completamente diferente das histórias das mulheres da classe dominada, porque as mulheres da classe dominada têm primazia, dominando, inclusive, o pequeno comércio no Brasil, nas vendas, porque eram mulheres da vida e da rua, ao passo que as sinhás e sinhazinhas ficavam enclausuradas em sobrados na casa grande. A gente tem de pegar cada ponto disso e discutir com conhecimento. Conhecimento acima de tudo, não adianta ficar só ideologizando; ideologizando a gente não vai para lugar nenhum. Repare que a história dos Estados Unidos é muito bem conhecida nos Estados Unidos; a história francesa também é muito bem conhecida na França; mas a história brasileira é muito mal conhecida no Brasil. Às vezes, as pessoas se surpreendem quando você fala que tinha escravos nos Palmares e se surpreendem quando você fala que os Tupinambás eram escravistas. A gente tem de conhecer, não pode ficar julgando. Uma frase que eu gosto muito que Freud estudava do Leonardo da Vinci: você não pode amar nem odiar nada se primeiro você não souber o que aquilo é, o que aquilo foi, como aconteceu e o que aquilo significa.

RPD: Qual sua opinião sobre as políticas educacionais e culturais, em cujo contexto já se fala inclusive de modelos militarizados das instituições de ensino?
AR: Eu vou lhe dizer uma coisa bem simples: eu estou a caminho dos meus setenta anos. Desde que eu me entendo por gente, o Brasil já acabou umas seis ou sete vezes, mas não acaba. É que os brasileiros são persistentes. Eu, por exemplo, não vou parar de trabalhar diariamente. Acho, portanto, que o Brasil sempre tem saída. Não vejo nada como catastrófico. Toda vez que eu discuto esses assuntos, a reação é, inicialmente, meio de surpresa e, depois, de concordância. De Marco Aurélio Nogueira a Caetano Veloso, a voz convergente é a de que “Eu tenho que fazer isso”, “Temos que fazer isso”. A gente não pode ficar restrito a esse filme em preto e branco, não. O Brasil é colorido.

 

 

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