Beatriz Rodrigues Sanchez*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)
Nas últimas décadas, uma série de avanços foram realizados no que diz respeito à igualdade de gênero. O direito ao voto foi conquistado, a partir da luta das sufragistas, no ano de 1932. O direito ao divórcio, em 1977. Com a Constituição de 1988, uma série de direitos foram reconhecidos e garantidos constitucionalmente: a ampliação da licença maternidade, a licença paternidade, o direito de mulheres presidiárias poderem amamentar, a criação de mecanismos de combate à violência contra às mulheres, entre outros.
Também, no âmbito legislativo, mais recentemente, tivemos a aprovação da Lei Maria da Penha, da lei de cotas para candidaturas femininas e da PEC das Domésticas. No âmbito da educação, as mulheres, que até pouco tempo representavam a maior parte dos analfabetos em nosso país, passaram a ser maioria entre as pessoas matriculadas em cursos de ensino superior. Estes são alguns fatos que demonstram o quanto temos avançado em direção à igualdade de gênero. No entanto, apesar desses avanços, a luta feminista ainda é necessária.
A violência contra as mulheres, em suas diversas expressões, ainda é um grave problema que a sociedade brasileira precisa enfrentar. Seja a violência doméstica, aquela que acontece dentro de casa, entre marido e mulher, ou entre filhos e mães, ou avós e netos; seja a violência política de gênero, que acomete as mulheres que ocupam cargos dentro da política institucional (como o feminicídio político de Marielle Franco); seja a violência obstétrica, especialmente contra mulheres negras que, por conta do racismo estrutural, são vistas como mais resistentes à dor e muitas vezes não possuem acesso à anestesia. Todas essas formas de violência ainda marcam, nos dias de hoje, a sociedade brasileira, historicamente patriarcal e racista. Apesar de o argumento da “legítima defesa da honra” em casos de violência contra as mulheres ter ficado demodê, todas essas formas de violência continuam impedindo que as mulheres exerçam o direito à vida e à dignidade de forma plena.
No âmbito da educação, apesar de termos entrado no ensino superior, alguns cursos ainda são majoritariamente masculinos, especialmente os cursos da área de exatas. As salas de aula dos cursos de engenharias, matemática, economia, estatística, por exemplo, ainda têm poucas mulheres. Essa diferenciação de gênero nas áreas de formação tem relação com construções sociais históricas que relacionaram as mulheres ao mundo privado da emoção e do cuidado e os homens ao mundo público da razão. Por isso, os cursos de enfermagem, pedagogia, assistência social e terapia ocupacional, apenas para citar alguns exemplos de cursos relacionados ao universo do cuidado, são majoritariamente femininos.
No mercado de trabalho, as mulheres ainda hoje recebem salários menores do que os homens, mesmo quando ocupam o mesmo cargo. Além disso, a divisão sexual do trabalho faz com que, além do trabalho produtivo remunerado, as mulheres sejam responsáveis pelo trabalho de reprodução social da vida, que inclui o cuidado com crianças e idosos e as tarefas domésticas. Neste cenário, algumas mulheres, especialmente brancas e de classe média, podem pagar para que outras mulheres, especialmente negras e periféricas, realizem este trabalho, muitas vezes em condições precárias. Assim, a divisão sexual do trabalho, conjuntamente com a divisão racial do trabalho, cria obstáculos para o exercício pleno da cidadania.
Quando analisamos a representação política das mulheres nas instituições, o cenário atual também é preocupante. No Poder Legislativo, no Executivo ou no Judiciário, as mulheres, especialmente as mulheres negras, periféricas, indígenas, trans e rurais, são minoria nos espaços de poder e na burocracia estatal.
Atualmente, o Brasil ocupa a 146ª colocação no ranking de mulheres nos parlamentos, atualizado mensamente pela organização Inter-Parliamentary Union (IPU). Essa sub-representação política das mulheres se reproduz em todos os níveis federativos – federal, estadual e municipal – prejudicando a consolidação de nosso regime democrático. Para se ter uma ideia, apenas 2 das 27 unidades da Federação (incluindo o Distrito Federal) são chefiados por mulheres: Rio Grande do Norte e Piauí. No governo federal, dentre as 23 pastas ministeriais, apenas duas são ocupadas por mulheres.
Como podemos perceber, a desigualdade entre homens e mulheres continua sendo estruturalmente marcante na sociedade brasileira. No entanto, quando falamos em “mulheres”, devemos lembrar que não formamos um grupo homogêneo. Apesar de a “história oficial” do feminismo, escrita majoritariamente por mulheres brancas, intelectuais e de elite, afirmar que os questionamentos sobre raça, identidade de gênero, classe e outros eixos de opressão teriam surgido apenas na “terceira onda” feminista, as mulheres negras, indígenas e periféricas historicamente têm criticado a universalidade contida no sujeito “mulheres”, desde o período colonial, pelo menos. Por isso, é importante que as políticas públicas contemporâneas que tenham como objetivo mitigar os efeitos da desigualdade de gênero levem em consideração toda a pluralidade da população feminina, desde uma perspectiva interseccional.
Diante de tudo o que foi dito até aqui, a luta feminista ainda se faz necessária. Nós, feministas, não silenciaremos diante de tudo o que ainda precisamos conquistar. Como afirma a escritora e feminista chilena Isabel Allende, no livro “Mulheres de minha alma”, “o feminismo, como o oceano, é fluido, poderoso, profundo e tem a complexidade infinita da vida; move-se em ondas, correntes, marés e às vezes em tempestades furiosas. Tal como o oceano, o feminismo não se cala”. Não nos calaremos.
Sobre a autora
*Beatriz Rodrigues Sanchez é pós-doutoranda vinculada ao Programa Internacional de Pós-Doutorado (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). É formada em Relações Internacionais pela mesma Universidade. É pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do CEBRAP. Desde a graduação vem estudando temas relacionados às teorias feministas e à representação política das mulheres.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista.
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