Lilia Lustosa*, crítica de cinema, especial para a revista Política Democrática online (53ª edição: março de 2023)
Um dos filmes que mais me chamou a atenção nesta temporada de premiações foi o Entre Mulheres (2022), da canadense Sarah Polley, que também assina o roteiro, premiado neste último Oscar na categoria Melhor Roteiro Adaptado.
O longa-metragem, quarto da carreira da diretora, foi produzido pela grande Frances McDormand, que também atua no filme (com uma parte pequena), e toca em temas universais e superatuais, embora vividos em um mundo que parece tão distante no espaço e no tempo. Violência contra a mulher, patriarcado, religião, cegueira, culpa, perdão… está tudo ali na tela. Uma história baseada no livro homônimo da também canadense Miriam Toews, publicado em 2018, que foi, por sua vez, inspirado em fatos reais. Acredite se quiser!
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Na trama, vemos um grupo de mulheres que mora em uma colônia (não identificada no filme, mas que é inspirada na Colônia menonita Manitoba, na Bolívia) que segue dogmas religiosos bastante ortodoxos. Uma sociedade patriarcal, em que as mulheres não frequentam a escola, não aprendem a ler e não são autorizadas a sair das áreas “protegidas”. Coisa que quase todas aceitam “pacificamente”, já que é Deus quem está no comando. Prisioneiras do século 21, guiadas pela fé e pela covardia dos homens.
Acontece que todas as mulheres dali, incluindo crianças e idosas, são vítimas frequentes de atos de violência sexual, sendo, para isso, dopadas com químicos usados na agricultura. As consequências macabras de despertarem com hematomas, sêmen ou sangue no corpo são, em um primeiro momento, atribuídas a seres demoníacos, vindos de outra dimensão e, portanto, impossíveis de ser combatidos. Até o dia em que duas adolescentes revelam ter visto um homem da própria Colônia fugindo na mesma noite em que uma criança fora violentada. Os suspeitos são levados à delegacia.
Diante das evidências e da ausência dos homens, que correm em defesa dos acusados, oito mulheres – brilhantemente interpretadas por Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Sheila McCarthy, Judith Ivay, entre outras – aproveitam para pensar em alternativas para a situação: 1) perdoar; 2) ficar e brigar; ou 3) fugir. As discussões são devidamente registradas em ata pelo professor dos meninos da Colônia, o sensível August (Ben Wishaw), cuja mãe havia sido excomungada por haver questionado as regras ali estabelecidas. O objetivo de todo esse “falatório” e de seu respectivo registro é ter insumos suficientes para exercer a democracia e fazer valer suas vozes, mesmo que para isso tenham que recorrer a desenhos e/ou símbolos na hora da votação.
Com essa premissa, o filme se desenvolve em torno de muitos diálogos e reflexões (brilhantes, por sinal), muitas trocas de olhares e muitas expressões faciais e gestuais que não escapam à câmara atenta de Luc Montpellier. Aliás, a fotografia é outro ponto forte do filme, belíssima, com o predomínio de cores dessaturadas, frias, escuras, que refletem com maestria a ausência de alegria que parece ditar as regras da vida daquela gente. O formato widescreen (ou panorâmico) ajuda a expor a solidão e o isolamento daquelas mulheres que nunca viram um mapa em suas vidas. Ao mesmo tempo, os planos super abertos do campo contrastam fortemente com o ambiente claustrofóbico do celeiro que lhes serve de congresso para as discussões e votações.
A trilha, assinada pela islandesa Hildur Guonadóttir, também merece destaque, já que alterna momentos sombrios com outros bem iluminados, representando com precisão a esperança daquelas mulheres ali enquadradas.
Entre Mulheres é um filme sobre o valor do diálogo e da democracia, sobre a coragem de enfrentar algozes em nome da liberdade, sobre a união como arma para lutar por uma causa maior, sobre educação de meninos e sobre tantos outros temas de plena relevância em tempos atuais. Lições aparentemente banais para nós, que vivemos em uma democracia e que desconhecemos a vida em cativeiro, mas de extremo valor para aqueles que, tão perto de nós, ainda têm de conviver com a ignorância das sociedades ditatoriais.
Entre Mulheres é também uma história sobre aquele sonho de justiça que insiste em morar em cada um de nós. Sonhos que podem parecer utopias descabidas, fantasias femininas ou até histerias, mas que se colocados em prática têm grandes chances de virar realidade. Sabiamente e, com um certo toque de ironia (já que na vida real as coisas não aconteceram bem assim…), Sarah Polley decidiu abrir seu longa com a frase: “Esta história é fruto da fértil imaginação feminina”. Que assim seja!
Sobre a autora
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de março de 2023 (53ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não refletem, necessariamente, as opiniões da revista nem da FAP.
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