Ivan Alves Filho*
“Prezado Senhor, concordo com nosso encontro. Peço apenas que o senhor entre em contato novamente comigo dentro de dois meses. Estou particularmente sobrecarregado de trabalho no Collège de France, devido à retomada de meus cursos. Receba as minhas melhores saudações”. Foi esse o teor da carta que o maior mestre da antropologia do século 20, Claude Lévi-Strauss, me enviara, há mais de quarenta anos, em reposta a uma consulta minha. Meu objetivo era entrevistá-lo para a revista de cultura Módulo, dirigida por Oscar Niemeyer. Para viabilizar isso, vali-me da amizade existente entre o antropólogo e a escritora siberiana radicada na França Lydia Lainé, sua antiga colega de turma na Sorbonne, no curso de filosofia.
Esperei acontecer os dois meses e fui conversar com o velho sábio. O encontro se realizou em seu gabinete de trabalho, no Collège de France, a principal instituição universitária da Europa. Silenciosa, apinhada de livros e revistas de cultura, a sala de Lévi-Strauss mais parecia um santuário. O velho sábio leu durante alguns minutos as questões que eu levara por escrito e começou imediatamente a respondê-las. “As questões são excelentes. O senhor está de parabéns”, disse ele, gentilmente. Eu tinha apenas 27 anos de idade e não pude disfarçar meu contentamento com seu comentário. Mas ele só aumentava a minha responsabilidade.
Lévi-Strauss discorreu sobre tudo – ou quase tudo. Falou da prática artística dos povos ditos primitivos, dos seus mitos. Revelou-se um admirador das sociedades sem classes, ele, um velho defensor do socialismo, formado ainda nos embates ideológicos do final da década de 20. Emocionou-se, ainda, ao descrever sua vida no Brasil, sua convivência com os índios do Mato Grosso. Ao relembrar os nambiquara, sua voz ficou embargada e seus olhos se encheram de lágrimas. Aquilo me comoveu muito: Lévi-Strauss pertence àquela raça de sábios que se envolve emocionalmente com o objeto de seus estudos.
Porém, o que mais me surpreendeu foi sua firme defesa dos postulados materialistas. Confessou ter dois livros de cabeceira. O primeiro deles, A contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx. O outro, Viagem ao Brasil, de Jean de Léry, um relato que praticamente inaugura a antropologia moderna, em meados do século XVI. Aprendi com Claude Lévi-Strauss que os fenômenos da superestrutura – tais como a arte e os mitos – refletem sempre o que se passa na infraestrutura de uma sociedade determinada. Vale dizer, eles têm sempre uma raiz concreta, não se podendo separar o imaterial do material. Para alguém que sofreu a acusação de desenvolver seu sistema de pensamento – o estruturalismo – fora da realidade histórica, isso não é pouco.
Claude Lévi-Strauss morreu quando completou um século de vida. Quase já não escrevia mais. Guardo com carinho as duas cartas que me escreveu, uma delas manuscrita, devidamente emoldurada por mim. Ao pensar no velho sábio, me vem à mente um belo poema de Worsworth:
“Assim como uma imensa pedra que às vezes vemos encolhida no topo nu de uma montanha…semelhante a uma coisa dotada de sensibilidade, qual um animal marinho…aquecido ao sol; assim parecia este homem, nem completamente vivo nem completamente morto ou de todo adormecido, em sua extrema velhice“.
Saiba mais sobre o autor
*Ivan Alves Filho é historiador e documentarista
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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