Henrique Brandão*, jornalista, especial para a revista Política Democrática online (52ª edição)
No longínquo ano de 1919, ocorreu no Brasil o primeiro Carnaval após a pandemia da Gripe Espanhola, que, no ano anterior, havia vitimado milhares de pessoas. Pela euforia dominante nas ruas e salões do Rio de Janeiro da época, o Carnaval daquele ano foi considerado o “maior da história”.
Agora, 104 anos depois, em pleno 2023, após dois anos sem folia por conta de outra pandemia, a da covid-19, as ruas voltaram a ser de novo tomadas pelos foliões, ávidos por retomar seu lugar na festa popular. Desta vez, a comemoração foi dupla: além de tirar o atraso carnavalesco causado pelo confinamento, comemorou-se a virada de página política do país, com a derrota do capitão e de seu projeto protofascista. A musiquinha “tá na hora do Jair já ir embora” era cantada por grupos de foliões nas esquinas do Rio de Janeiro.
O Carnaval sempre foi uma manifestação de desafogo para os infortúnios da vida. Contra o cotidiano opressivo, a brincadeira, o escracho e o delírio se transformam em válvula de escape das cruezas do mundo. Nos quatro dias de folia, as ruas receberam o afeto que se encerra no peito juvenil da rapaziada: são abraços, beijos e risos que traduzem o encontro coletivo carregado de alegria.
Clique aqui e veja outros artigos da 52ª edição da revista online
A Riotur, empresa que organiza o Carnaval carioca, estima que mais de 400 blocos, bandas e cordões fizeram a festa da galera em todas as regiões da cidade. Essa estimativa é somente para as agremiações oficiais – aquelas que receberam autorização do poder público para pôr o cortejo na rua. Tem ainda um sem-número de blocos que saíram por conta própria, sem carro de som e trajeto definido.
Como amante do Carnaval, todos os anos saio às ruas, não apenas no Simpatia É Quase Amor, bloco do qual sou fundador. Por gosto e diversão, vou a vários desfiles e bailes populares nos quatro dias de folia. Em todos os encontros de que participei este ano, oficiais ou não, pude constatar a felicidade estampada no rosto das pessoas. Um misto de alívio e ânimo novo para a vida recarregou as baterias dos foliões. As fantasias criativas voltaram a ocupar com força as praças e ruas. A purpurina saiu do armário para cintilar nos corpos, o confete e a serpentina deram o ar de sua graça, os transportes públicos ficaram lotados de foliões.
O clima foi de descontração e convivência harmoniosa e até o assédio de playboys, que em outros carnavais incomodava as meninas, em particular, e a todos, em geral – por seu caráter violento, machista e muitas vezes misógino –, foi bem menor, o que ajudou a tornar a festa mais colorida e diversificada. Sem exageros, é possível dizer que a diversidade da comissão que subiu a rampa do Palácio do Planalto na posse de Lula, emocionando o Brasil, pareceu estar representada nas ruas em uma comunhão de alegria e vibração contagiante.
E não foi só o Carnaval de rua que brilhou. Os desfiles na Sapucaí foram excelentes, com uma boa safra de sambas e, principalmente, enredos com temáticas criativas e cada vez menos chapa branca, que buscaram histórias ligadas as raízes das suas comunidades, as temáticas da cultura popular ou até mesmo leituras críticas de datas oficiais, como foi o caso da Beija-Flor, que mostrou na avenida uma versão “ao avesso” do Bicentenário da Independência. A campeã Imperatriz Leopoldinense, com seu belo desfile em homenagem a Lampião, representou bem essa tendência. Aliás, basta olhar para as histórias contadas pelas escolas que voltaram ao Sambódromo no desfile das campeãs para constatar a variedade dos temas apresentados.
Não há dúvida de que o fato de termos nos livrado de um período de trevas, carregado de tristeza e de intolerância, fez a diferença neste Carnaval. Não à toa, em muitos blocos, a folia deste ano foi chamada de “Carnaval da democracia”.
E que continue assim. O Carnaval, a maior manifestação cultural do país, combina com alegria, senso crítico, diversidade e afeto. Coisas que, nos últimos anos, estava em falta no Brasil.
Carnaval e democracia são sinônimos de uma festa onde o povo impera e dá as ordens.
Saia mais sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco Simpatia É Quase Amor
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de fevereiro de 2023 (52ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da Revista.
Leia também
Revista online | Lula e Banco Central: charge destaca impasse
Revista online | Regulação das mídias digitais: o que fazer?
Revista Online | Cinema = Arte + Tecnologia – Uma fórmula esquecida?
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online