Delmo Arguelhes*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Em outubro de 2022, numa entrevista a um podcast, o então presidente da República disse que, em determinada ocasião, ao passear de moto em uma periferia de Brasília, ter “sentido um clima” ao ver meninas venezuelanas bem-vestidas e maquiadas, e concluiu que elas só poderiam estar daquele jeito para “ganhar a vida”. Não iremos discutir aqui todos os desdobramentos desse episódio. Trataremos tal incidente como um sintoma, uma ocorrência que pode desvelar estruturas subjacentes da sociedade brasileira.
Como é de conhecimento geral, as meninas não eram prostitutas; estavam tão somente participando de um projeto social, uma oficina de maquiagem. O olhar lançado sobre elas, no entanto, enxergou outra coisa. Tal olhar não é explicado apenas por deficiências cognitivas ou de caráter do indivíduo. É revelador, pois trás para a superfície os preconceitos da elite nacional acerca das classes desfavorecidas.
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Preconceito, seguindo os desenvolvimentos de Hans-Georg Gadamer, em Verdade e Método (1960), é tão somente o juízo prévio, emitido anteriormente à análise do ente em foco. Existe, inclusive, um preconceito acerca dos preconceitos, propagado pelos iluministas do século XVIII. Ele não é, necessariamente, pejorativo ou errôneo. Apenas precisa ser revisto – para ser confirmado ou rejeitado –, a partir do exame do ente.
Enganosamente simples – pois a coisa simples é sempre complicada, segundo Carl von Clausewitz –, o preconceito é inescapável, pois a intermediação entre o ser e a realidade é operada por meio de preconceitos. Tal característica obrigatória, no entanto, pode ser remediada pela exortação de Gadamer: “saiba controlar os próprios preconceitos”.
O controle dos próprios preconceitos é um exercício constante. Discriminações de classe ou de raça não se originam no interior do indivíduo, mas são aprendidos e internalizados no convívio em sociedade. Havia uma propaganda institucional, nos meios de comunicação no país, há alguns anos, onde se perguntava: “onde você guarda seu preconceito?” Racismo e ódio de classe são ideologias, são reproduzidos na cultura e na linguagem, funcionando como ficções simbólicas, que regulam a realidade. Dito isso, há também décadas de pensamento social, antirracista, pós-colonial e decolonial, os quais forneceram e ainda fornecem a base para uma crítica eficaz daqueles preconceitos.
Confira, a seguir, galeria:
O psiquiatra e psicanalista Wilhelm Reich (1897-1957), oriundo do antigo Império Austro Húngaro, publicou, dentre outras obras clássicas, Psicologia de Massas do Fascismo (1933). Nesta obra, Reich vincula a repressão sexual à desvalorização da sexualidade feminina diante da reprodução, contrapondo dois tipos ideais: a mãe e a prostituta.
Numa sociedade em que as mulheres têm de estar dispostas a ter filhos, sem qualquer proteção social, sem garantias quanto à educação das crianças, sem mesmo poderem determinar o número de filhos que terão, mas que mesmo assim têm de ter filhos sem se insurgirem contra isso, é realmente necessário que a maternidade seja idealizada, em oposição à função sexual da mulher (Reich, 2001: 99) Grifos nossos.
Trazer todo o raciocínio de Reich para a atualidade, quase um século após a publicação da obra, por óbvio, guardaria muitos problemas, se não forem feitas as devidas ponderações sobre as mudanças de mentalidade e atitude na sociedade ocidental desde os anos 1930. Isso inclui a revolução sexual dos anos 1960, a pílula anticoncepcional e toda a luta por direitos civis dos últimos 70 anos. Não vamos tomar esse caminho. Pensaremos apenas na dicotomia reichiana mãe/prostituta que existe num país com passado escravista e colonial, e como tal dupla fica patente na clivagem social.
Por colonização, sempre adotamos a definição da fundamental obra de pensamento pós-colonial de Alfredo Bosi, Dialética da colonização (1992). Colonizar é ocupar um novo chão, explorar a terra e submeter os naturais. Ou seja, um processo profundamente violento e genocida. Os colonizados, vítimas desse processo, servem, primariamente, como mão de obra barata, pronta para ser explorada.
Benjamin Moser, um estudioso estadunidense da obra de Clarice Lispector, já havia observado que a elite brasileira trata a terra e o povo como objetos de conquista colonial. Ou seja, para a elite, as classes subalternas ainda seriam objeto de domínio, como na antiga América Portuguesa. A concepção de trabalho doméstico, no Brasil, ainda guarda muito das características do passado colonial e escravagista.
A repressão sexual não age sem deixar marcas no inconsciente, como bem já havia observado Sigmund Freud. Os corpos das classes oprimidas não servem apenas para a exploração no trabalho. Servem também como deleite sexual, já que as mulheres que seriam recatadas e “do lar” estariam destinadas à maternidade. Há décadas se pensa o fenômeno fascista como uma aliança transitória entre canalhas – que pregam uma sociedade ideal homogeneizada e excludente –, e pessoas amedrontadas, indignadas com a perda de privilégios ou ávidas por lucro. No caso brasileiro, além de tudo isso, há também a identificação do projeto fascista com o inconsciente colonial, que conquista, explora e oprime.
Sobre o autor
*Delmo Arguelhes é doutor em História pela Universidade de Brasília (UnB), com estágio pós-doutoral em estudos estratégicos na Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador associado sênior do Núcleo de Estudos Avançados do Instituto de Estudos Estratégicos (NEA/INEST) da UFF. Autor do livro Sob o céu das Valquírias: as concepções de honra e heroísmo dos pilotos de caça na Grande Guerra (1914-18).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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