Seminário “Novo pacto entre o Estado e a sociedade brasileira” – Rio de Janeiro (24/02/2018)
Relatório: professor Caetano Araújo
1 – A apresentação inaugural e o marco da discussão
A primeira palestra delimitou, com muita felicidade, os marcos da discussão que se seguiu. Ao abordar o tema, falamos necessariamente de Ocidente e, na tradição ocidental, de democracia. Daí o recorte espaço-temporal utilizado para situar o caso brasileiro: as sociedades ocidentais do pós-guerra, aquelas que presenciaram o fim da proeminência social e cultural de suas antigas aristocracias.
Na vigência da guerra fria, desenvolveu-se nesses países um determinado padrão de relações entre Estado e sociedade. Coube aos liberais, à margem da disputa central no campo da cultura entre comunistas e social-democratas, vocalizar o fundamento dessas sociedades, sua diferença principal e vantagem mais importante em relação aos países do Leste: suas estruturas institucionais, centradas na regulação e no direito.
A partir dessas estruturas vigorou um acordo tácito a presidir essas relações: a sociedade delegava ao Estado o direito de intervenção, limitado pela lei e pelo hábito, pela tradição, portanto, e o Estado garantia a autonomia da sociedade, limitada pelo respeito às instituições vigentes.
Esse arranjo mostra fadiga a partir dos anos 1970. De um lado, a guerra fria perde nitidez ideológica e os partidos de esquerda e direita convergem na afirmação e ampliação do estado de bem-estar social. Com a ascensão da pauta dos direitos humanos e do bem-estar social, acentua-se o processo de publicização do direito, com sua inevitável contrapartida em termos de judicialização da política. Partidos perdem relevância em benefício de agências judiciais.
No Brasil esse processo teve como marco a Carta de 1988. Seu texto contém, na verdade, um novo desenho de estado, no qual a vontade majoritária, aferida por meio dos mecanismos também previstos na Constituição e nas leis, pode ser agora contestada, perante o Poder Judiciário, mediante o apelo a direitos fundamentais. A Justiça passa a gerar fatos no campo da política.
Diversas características distinguem essa nova situação, no Brasil e no mundo: uma cultura política mais inclusiva; o foco na ação, não na estrutura; o recuo relativo das demandas econômicas, com o avanço concomitante das demandas por reconhecimento; aumento da reflexividade dos atores; subjetivação das reivindicações, ao ponto do esquecimento da “materialidade do mundo”; sua fragmentação em diferentes políticas setoriais, com a despolitização consequente.
Nesse quadro a agenda de um novo pacto entre estado e sociedade no Brasil contemplaria a recuperação dos condicionantes estruturais nos processos e lutas sociais, uma nova ancoragem na materialidade do mundo, com foco na cidade como espaço de conflito e cooperação entre os atores, a substituição da perspectiva setorial pela transversal na discussão das políticas públicas e, mais importante, a restauração da centralidade da questão democrática.
Seguiram-se dois comentários, que se revelaram complementares à palestra inaugural. O primeiro explorou a relação entre sociedade e estado no Brasil a partir de uma avaliação do desempenho presente do estado, à luz dos objetivos definidos em nossa Constituição, por meio da comparação internacional. Ou seja, se prosperidade, equidade, soberania são, entre outros, objetivos indiscutíveis, qual o desempenho do estado brasileiro na sua consecução? Qual a sua eficiência, em termos de volume de recursos investidos e seu retorno? Se este estado não é adequado, qual seria o desenho do estado necessário para atender às demandas da sociedade?
Fácil é concluir, das evidências apresentadas, que o estado brasileiro gasta muito e mal. A despesa se concentra nos servidores, ativos e aposentados. O estado estaria tomado por dois vícios paralisantes: o distributivismo e o corporativismo. A tarefa seria reformar o estado, fazer a transição de um estado produtor de bens e serviços para um estado provedor dos serviços essenciais ao cidadão. Em concreto, privatizar boa parte das empresas estatais e investir no bom funcionamento das agências reguladoras.
O segundo comentário abordou a questão das relações entre sociedade e estado a partir do ponto de vista do cidadão. As manifestações de 2013 foram consideradas um divisor de águas nessa perspectiva. No momento anterior às primeiras manifestações da crise econômica em termos de inflação e desemprego, milhões de pessoas ganham as ruas com uma pauta centrada na qualidade dos serviços públicos (serviços padrão FIFA) e na desconfiança em relação à operação das eleições e dos partidos no país. Os protestos tinham como alvo, portanto, a opacidade da política e a iniquidade na prestação dos serviços públicos.
A partir dessa constatação, três hipóteses foram levantadas. Em primeiro lugar, a maior disponibilidade de informação na sociedade brasileira, em razão da expansão do acesso à internet e à conquista do acesso universal ao ensino fundamental, efetuada 15 anos antes das jornadas de junho. Em segundo lugar, a atualidade dessa agenda, vez que nenhum avanço significativo nos seus termos foi observado desde então. Em terceiro lugar, o espaço aberto para o debate público de temas como ajuste fiscal, pacto federativo, reforma tributária e reforma política.
2 – O curso do debate
Grande número de questões aflorou no debate. Apresentamos a seguir algumas das mais discutidas.
2.1. – A centralidade da questão democrática
A centralidade da questão democrática, levantada na apresentação inicial, não foi objeto de contestação, no decorrer do debate. Porém, na medida em que a democracia foi tomada como critério principal, na maior parte das intervenções, para fundamentar os argumentos ou para recusá-los, o debate reafirmou a centralidade da questão.
2.2. – Estado produtor ou estado provedor
A partir do segundo comentário, várias intervenções defenderam concluir a passagem, já iniciada, de um estado produtor de bens e serviços para um estado provedor. Conforme o argumento, estatais criadas há cinco décadas, como a Eletrobrás, já esgotaram seu papel de indutor do desenvolvimento. Devem ser privatizadas e os recursos a eles destinados revertidos para serviços essências, fundamentalmente educação, ciência e tecnologia, fatores chave para o ingresso numa economia do conhecimento.
2.3. – A questão do distributivismo
Também a partir do segundo comentário, foi questionada a diretriz de abandono do distributivismo numa sociedade pobre e desigual como o Brasil. Manter as pessoas na escola implica assegurar as condições mínimas de sua sobrevivência. Conforme esse argumento alternativo, precisaremos de distributivismo, em doses altas, ainda por alguns anos.
2.4. – Corporativismo, ou interesses gerais versus interesses particularistas
As intervenções convergiram com a premissa apresentada no segundo comentário. O estado brasileiro está capturado por poderosas corporações de servidores, que tem como objetivo primeiro o atendimento de seus próprios interesses. O tema se vincula à necessidade de uma política de reforma do estado que confronte esses interesses. Um dos participantes apresentou uma posição alternativa: o convencimento das corporações para uma estratégia reformista, anticorporativa, ao invés do confronto direto com elas.
2.5. – Política velha e política nova
Na perspectiva dos eleitores mais jovens, política velha está ligada a pautas universais, monopólio dos partidos políticos, canais de informação e comunicação tradicionais. Política nova, por sua vez, bate com pautas locais e identitárias, protagonismo dos movimentos, comunicação em rede. Uma vez que partidos e representação política permanecem condição da democracia, a questão é: como construir as pontes entre esses mundos da política?
2.6. – Centralização versus descentralização
A maior parte das intervenções defendeu a descentralização como condição de governo mais eficiente e democrático. Mais eficiente, porque regras gerais não podem contemplar igualmente a enorme diversidade de especificidades regionais e locais que o conjunto dos municípios brasileiros abriga. Mais democrático, porque a delegação de responsabilidades expõe os eleitos à avaliação popular e termina por produzir uma representação de melhor qualidade. O argumento contrário, de longa tradição no pensamento brasileiro, manifestou-se de forma minoritária, defendendo a decisão centralizada como racional, no bojo de projetos estratégicos para o país, contra o caráter particularista, imediatista e, portanto, irracional, das decisões locais.
2.7. – Reforma política
Foi abordada a insuficiência da regra atual, tanto no que se refere às eleições, quanto ao financiamento das campanhas, e a consequente urgência em dar continuidade ao processo de reforma. O argumento teve como alvo as consequências indesejadas da regra no bom funcionamento da democracia, no que respeita ao estímulo à irresponsabilidade política dos eleitos e ao poder concedido aos grandes financiadores das campanhas. Foi apontada a crescente globalização do financiamento ilegal de campanhas, assim como a vulnerabilidade das campanhas nacionais à manipulação de informação com articulações internacionais.
2.8. – Incrementalismo versus refundacionismo
A questão surge a partir de dois pressupostos: a centralidade da questão democrática e, consequentemente, a promoção de mudanças exclusivamente nos marcos da democracia. Ou seja, toda mudança só se torna possível quando o debate acumulado resultar na concordância ampla a seu respeito no meio da sociedade. Consequentemente, pequenas mudanças pontuais e acumulativas tem mais possibilidade de congregar a concordância necessária do que propostas de mudança abrupta. O tema deriva da opção pelo reformismo e tem como consequência imediata a defesa intransigente da Constituição, como regra que define os processos legítimos de discussão e deliberação. O tema foi levantado em relação com a proposta de reforma política: cabem no momento propostas de mudança mais drástica de sistema de governo e até de regra eleitoral ou a prioridade deve recair sobre aperfeiçoamentos pontuais da regra vigente? Ou, num degrau acima de discussão, se as propostas devem necessariamente passar pelos representantes democraticamente eleitos, uma das condições de seu sucesso não estaria na preservação do diálogo com esses representantes? Nessa linha, o próprio conteúdo dessas propostas não deveria atentar para o fortalecimento desse diálogo e descartar pontos capazes de comprometê-lo?
2.9. – A esquerda democrática e os liberais
A procura de uma nova relação entre estado e sociedade brasileira, nos moldes propostos, leva à questão da relação entre a esquerda democrática e os liberais. Essa questão não foi debatida na perspectiva da identificação de atores partidários, mas da interseção das agendas, de modo a esclarecer os pontos hoje comuns e aqueles que permanecem divergentes. Foram levantados os seguintes pontos comuns: compromisso com a democracia, defesa dos direitos individuais, defesa da diversidade, defesa de um desenho de estado que incida menos sobre a produção de bens e mais sobre a formação do cidadão. Como áreas de discordância possível, a consideração da equidade social como questão política, ou seja, como possível objeto de políticas públicas. De toda forma, foi reconhecido, primeiro, que a esquerda democrática incorporou no seu ideário o programa político dos liberais e, segundo, que é necessário superar divergências e a postura hegemonista de setores liberais para a construção de um programa comum.
Participaram do seminário: André Amado, Alberto Aggio, Any Machado Ortiz, Bruno Pinheiro Wanderley Reis, Caetano Araújo, Cléia Schiavo Weyrauch, Hamilton Garcia, José Augusto Neves, Juarez Amorim, Luís Sergio Henrique, Luiz Carlos Azedo, Maria Alice Resende De Carvalho, Miguel Arcangelo Ribeiro, Paulo Fábio Dantas, Paulo Gontijo, Sergio José Cavalcanti Buarque, Paulo Meireles, David Zaia, Eliseu Neto.
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